1.Estende-se diante de nós a monotonia das tarefas aparentemente banais: lavar a louça, espanar a poeira daquele Graciliano ainda não lido, revisar o texto, tirar o lixo, comprar o remédio. É necessário um tipo de coragem cotidiana para enfrentar a rotina. Não foi Aristóteles quem ensinou que para ser praticada constantemente, a virtude precisa se tornar um hábito? É mais fácil pensar que seria melhor sermos heróis, grandes escritores, influenciadores ou filósofos, do que fazer o que deve ser feito.
2. O óbvio não grita. A grama não proclama que é verde; ela simplesmente se oferece diariamente aos nossos sentidos e à nossa inteligência, convidando-nos a pisá-la.
3. Assim são os deveres de estado, um amplo gramado — ou, quem sabe, uma floresta, mais desafiadora, mas repleta de mistérios e possibilidades — que nos é oferecido todos os dias como um caminho natural. Digo natural porque o cristianismo que produz santos é sublime e espiritual, mas também terreno, concebido com um sobrenaturalismo histórico, comprometido com a micro-história e com o próximo, nossos samaritanos cotidianos.
4. Sonhar com um heroísmo de capa e espada é mais fácil. Sonhar com cavaleiros templários ou com padres Pios voadores e bilocadores é mais confortável do que educar os filhos ou enfrentar uma rotina de trabalho cansativa, mas digna e honesta.
6. É instintivo estarmos sempre dispostos a nos sacrificar e prontos para dar a vida por nossos filhos. O heroísmo magnânimo e grandioso está sempre no radar daqueles que se sentem atraídos pela vocação humana. Mas me parece que antes de tudo é necessário aprender a árdua arte de viver com eles e ensiná-los a viver. Aprender, a chorar por sua alma. A dedicar-lhes estima. A colocar-nos em situações por sua causa. (“Belos Cavalos”, Cormac McCarthy). O sábio da aldeia é antes o sábio de sua própria casa.
7. Aliás, Timothy Radcliffe escreve sobre Teresinha: “Amar suas irmãs religiosas exigiu, de fato, uma boa dose de coragem, uma morte e ressurreição. Suspeito que o martírio, no sentido literal, talvez tivesse sido mais fácil!” (“A arte de viver em Deus”)
8. Santa Teresinha desejava ser mártir anunciando Cristo no Oriente, mas acabou vivenciando o martírio cotidiano ao enfrentar a tuberculose no Carmelo de Lisieux.
9. Mas, se é assim, se tudo precisa ser trazido à dimensão cotidiana, onde estaria a aventura do cristianismo nisso tudo? Timothy Radcliffe observa que o cristianismo perdeu seu impacto na imaginação popular ao deixar de ser um drama e uma narrativa cósmica sobre a relação de Deus com a humanidade.
10. Eu mesmo escrevi um tweet inspirado pelo frei Radcliffe e pelo profeta Elias, personagem frequente nos últimos dias da liturgia católica: Quem não crê na relação cósmica e dramática entre Deus e o homem não reza. E quem não reza não é alimentado por corvos, não vê a multiplicação da farinha nem meninos ressuscitarem. Então, para que ter fé?
11. Como conciliar a aventura da fé com a rotina dos deveres diários? O tema é complexo e, não sendo eu teólogo, o espaço limitado desta newsletter não permite maiores digressões. Por ora, compartilharei dois exemplos de eventos que vivenciei e que se assemelham a pequenas irrupções do sobrenatural em meio a uma rotina perfeitamente trivial.
12.Recebi uma proposta de emprego, o que é sempre tentador nesses tempos, especialmente para um brasileiro. Sempre que estou profundamente envolvido em atividades que me permitem explorar minhas parcas habilidades vocacionais, algo surge para me desviar. E, como de costume, algo com um forte apelo emocional.
13. Como não tinha tempo para rezar, e era dia de Santo Antônio, acendi uma vela diante das relíquias do santo pregador e, este sim, manejador habilíssimo da palavra humana e divina. Sem dizer praticamente uma palavra, mas dirigindo olhares e pensamentos em direção à vela e ao paninho que tocou as roupas do santo, pedi luzes. Desligado que sou (o próximo episódio o dirá), deixei a vela queimar até o final, e, antes de dormir, fui conferir o e-mail. Lá estava: uma proposta de tradução. Eis o sinal para que eu continue, tentando, às apalpadelas — não como o talentoso homem de Pádua e de Lisboa —minha jornada e minha luta com a palavra.
14. A aventura da conversação não pode ficar só no âmbito intelectual ou das idéias. Afinal, Santo Antônio não está aqui, nesta escrivaninha, esperando que eu acenda de novo uma vela diante da relíquia?
15. O segundo episódio envolve, para usar uma palavra dita a um amigo que sofre do mesmo mal, minha “mente devastada pelo TDAH”. Acho que já contei aqui as inúmeras vezes em que perdi carteiras — nos bancos das praças, abertas no meio do asfalto, nas calçadas. Sempre aparece um anjo para me devolvê-las intactas, com cartões, documentos e valores. Desta vez, saí de casa para acompanhar minha esposa até o trabalho. Ela a pé, eu de bicicleta, com o moleque mais novo na cadeirinha. Chegamos ao ponto final e o menino pediu-me um docinho. Fomos ao supermercado e, como sempre, ele largou minha mão e saiu correndo pelos corredores. Escolhidas as balas e o chocolate, voltamos para casa e, ao fim da tarde, quando tive que voltar à rua para mais compras, cadê minha bolsinha com quatro cartões e toda a minha reserva de dinheiro físico (isso ainda existe?) ? Enlouqueci todo mundo dentro de casa, colocando-os para procurar a bolsa. Liguei para minha esposa, que aguardava uma consulta importante, e a enlouqueci também. Rezei. Rezei o Veni Creator (não me perguntem porque, talvez para iluminar minha mente e me fazer recordar), rezei a Salve Rainha, quis cancelar os cartões… Mas antes disso, montei na bicicleta e fui ao supermercado verificar com a menina do caixa que me atendeu pela manhã. E menina não estava mais lá, mas a outra funcionária, que eu nem conheço, olhou para mim e logo perguntou: Veio buscar a bolsinha, né? O resto é história.
16. Devo dizer que a bolsinha — feminina, aliás, da minha esposa — estava intacta, com cartões, documentos e valores. Os anjos sempre dizem amém.
15. Nick Cave, lançou o segundo single de seu aguardadíssimo novo álbum, “Wild God”, que virá à luz em em 30 de agosto. “Frogs”, a canção, é belíssima e faz a expectativa crescer em relação a esse novo trabalho. Um fã espantado perguntou a respeito da letra do single nos Red Hand Files, dizendo-se meio perdido a respeito do significado, porque Nick é o tipo de artista que não entrega tudo de mão beijada. Suas canções costumam deixar o ouvinte meio atônito, perguntando-se como se encontrar em meio à tanta beleza. Nick é um compositor de dramas cósmicos. Nesse sentido, uma vez que Nick Cave é cada vez mais um cristão que vai à Igreja, dou novamente voz à Timothy Radcliffe em seu belíssimo “A Arte de Viver em Deus”: “A fé já não desencadeia uma aventura gloriosa. Moralizou-se. A vida divina consiste em obedecer regras. Torna-se fastidiosa. Os romances foram inventados para oferecer a comoção que a fé já não enseja. Se a fé não é um drama, nós mesmos temos de compor outros dramas, embora nunca estejam à altura do drama de Cristo”.
Nick Cave é um artista cuja linguagem lírica e musical transforma um simples retorno da Igreja para casa, onde um casal contempla sapos pulando numa sarjeta, em um evento cósmico que conecta intimamente o céu e a terra. No mundo de Cave, sapos são como homens, homens como crianças no céu, que são como sapos saltando felizes entre as nuvens que choram. Ele mesmo explica a seguir:
The Red Hand Files, ISSUE #289 / JUNE 2024:
Enquanto ouvia "Frogs" no velho e bom Spotify, me peguei pensando em como usar bem esses poucos centavos. No entanto, percebi que não tenho a menor ideia sobre o que essa música trata. Simplesmente adorei a canção, mas suas letras não fazem sentido para mim. Então, aqui vai minha pergunta: como você decide se uma letra é boa ou se deve ser descartada? Pergunto isso porque — e quero dizer da maneira mais gentil possível — você caminha numa linha tênue entre a excelência e algo que definitivamente não presta, meu amigo.. Enfim, acho melhor eu ir andando. Foi ótimo conversar, todo amor para você e os seus!
BARRY, LEATHERHEAD, REINO UNIDO
Alerta de Spoiler: Se, como eu, você prefere chegar a sua própria interpretação de uma música, por favor, não leia mais.
Caro Barry,
A imagem melancólica de você sentado em Leatherhead, perplexo com a letra de "Frogs" e sem conseguir encontrar sentido nela, me manteve acordado por boa parte da noite passada. Agora, com a chegada da manhã, quero tentar lhe explicar a canção para que você sinta que seus poucos centavos foram bem investidos Vamos lá.
Em Frogs, um casal (muito provavelmente minha esposa e eu) caminha pela chuva numa manhã de domingo. Um ouvinte atento deduzirá que estão voltando da igreja porque os sinos estão tocando, e uma leitura da Bíblia, a história de Caim e Abel, ainda está rondando em suas cabeças.
Ao início da semana, ele se ajoelhou
E esmagou a cabeça do irmão com um osso.
O assassinato de Abel por seu irmão Caim é a primeira interação humana que ocorre fora do Jardim do Éden. Essa representação do pecado e do sofrimento marca um início terrível tanto para a Bíblia quanto para "Frogs". A música nos insere nesse cenário de iniquidade e desespero humano. No entanto, o que o casal enxerga à sua frente enquanto caminha de mãos dadas, numa manhã chuvosa de domingo, está longe de ser desanimador. Pelo contrário, o mundo está fervilhando de vida.
Os sapos pulam nas sarjetas
Saltando em direção a Deus
Admirados pelo amor e admirados pela dor
Admirados de estarem de volta na água novamente
Esses pequenos sapos, Barry, somos você e eu, e toda a humanidade - momentaneamente saltando em direção ao amor, ao maravilhamento, ao significado, e à transcendência, apenas para cair na sarjeta novamente. É uma imagem adorável e, na minha opinião, faz valer os seus centavos.
No próximo verso, descobrimos que -
As crianças nos céus
Estão pulando de alegria
Pulando por amor
E abrindo o céu acima
Com isso quero dizer quero dizer que aqueles que já se foram, os que não estão mais conosco, e os que a morte transforma em crianças (mais uma vez, somos você e eu, e é o nosso destino, lamento dizer) são como os sapos saltando felizes entre as nuvens que choram. Mais uma vez, nossas alegrias emergem de nossas múltiplas tristezas. Palavras simples, Barry, mas não desprovidas de sua beleza!
Mas então, no verdadeiro estilo Caveiano, a música muda de direção. Surge um clamor—
Tire essa arma da sua mão!
Refletindo sobre a história original de Caim e Abel, faz-se um apelo pelo fim do conflito, para que a humanidade cesse de se destruir, e, Barry, para que sejamos gentis. É um apelo ao amor, reconhecendo que mesmo em meio às suas dores, o casal retorna ao leito matrimonial, uma imagem de alegria entrelaçada às tristezas compartilhadas.
Levando você para casa, querida
Para uma cama feita de lágrimas
E a música vai crescendo e ganhando força -
Salte para dentro do meu casaco! Salte para dentro do meu casaco!
E à medida que atinge seu clímax deslumbrante, o narrador, completamente entregue à experiência do momento, improvisando, implora -
Mate-me! Mate-me!
Ele pede para ser morto por Deus, para ser consumido pelo amor, para ser libertado da condição humana e renascer em algo transcendente, enquanto os cantores clamam e as cordas e os metais ecoam extasiados. Interessante, não é?
A canção atinge seu clímax orgásmico, depois se dobra sobre si mesma, aqueles espasmos de alegria vão desaparecendo, aterrissando ‘de volta na água novamente’ (‘back in the water again’), numa espécie de depressão —
Kris Kristofferson passa, chutando uma lata
Em uma camisa que ele não lava há anos
Os fãs de música country entenderão que essa citação refere ao grande tema de desolação espiritual de Kris Kristofferson, Sunday Morning Coming Down, em que seu narrador acorda na manhã de domingo, exausto e de ressaca, e escolhe, ‘entre suas camisas sujas, a mais limpa’. Barry, confira isso.
Frogs é um hino laudatório e epigramático ao cosmos tal como por vezes o encontramos, um cosmos que se inclina para o amor e que se regozija em sua própria beleza persistente. Os Bad Seeds capturaram de forma brilhante o sentimento do salto alegre do sapo, com seus pés e mãos membranosos espalhados, pulando como Kermit em direção ao divino, apenas para acabar de volta na sarjeta. Mesmo que atos de quebrantamento humano dêem início e encerram a canção, a dança jubilosa da vida é representada sobre esse substrato de sofrimento, eternamente entrelaçados um com o outro. Esse é, se preferir, o significado da música.
Barry, você me perguntou como sei se uma letra é boa? Descobri a resposta quando cantei Frogs pela primeira vez no estúdio. As palavras simples de Frogs, quando transformadas em música, me tocaram profundamente com seu significado. São boas letras? Não sei dizer com certeza. Mas, para mim, elas são especiais, urgentes e completamente novas. É por isso que escrevo para você, com sinceridade e respeito, para que você as conheça.
Com amor,
Nick
***
Um amigo já me disse que eu entrego muito fácil meus segredos. Foi assim com Annie Dillard, escritora extraordinária ainda não traduzida para o português que eu apresentei a alguns leitores desta newsletter — alguns deles meus amigos — e noto que já é um segredo um tanto espalhado. Isso é bom. Por isso falei tanto do maravilhoso livro “A arte de viver em Deus”, de Timothy Radcliffe hoje. Leiam. Vai fazer um bem imenso a todos vocês.
Essa newsletter é gratuita e sempre será, mas, se você gosta dela, considere comentar aqui, curtir os posts, compartilhá-la e divulgá-la. É fácil. Ela está cheia de botõezinhos por aí.
Obrigado pela leitura! Inscreva-se abaixo para receber novas edições e apoiar meu trabalho.
Eu sempre aguardo com grandes expectativas suas News. Vou sempre atrás de suas referências. Que o Senhor continue de usando meu irmão.