Ninguém entende a alegria dos santos
Pode haver uma tristeza boa?; a alma e o corpo; o enigma da paternidade; o Deus Selvagem; no sangue.
São Paulo diz em uma de suas cartas que pode haver uma tristeza boa. Todo aquele que pensa é um pouco infeliz. O sabiá tem o canto triste, mas o seu canto, mesmo sem o privilégio do pensamento, é a única arte com a qual ele pode responder a Deus. O sabiá não poderia fazer de outro jeito. Então, deve ser uma tristeza boa. Vejo um deles pulando lepidamente no solo do jardim, como se a música que produzisse fossem lindas melodias de verão. É um bicho gracioso. Na verdade, é um pouco o inverso das canções dos Smiths: summer songs com letras invernais. O que quer que o aflija, parece ser intratável, o sabiá continuará cantando sua melodia triste. Ainda assim, não custa tentar a alegria, porque todas as coisas caem e são repostas, e quem as reconstroi sente alegria, escreveu Yeats… on your side ? Meu falecido pai, que nunca dizia nada sobre quase tudo, tinha um senso fino para captar a tristeza: porque você está triste? E era um efata: sempre fazia lembrar que no meio da tempestade pode haver a alegria de se ter um telhado, ou que no fundo da tristeza há uma espécie de força capaz de nos fazer subir. Sem querer, também lembrei-me dos poços de Murakami. Ah, papai, que não lia senão jornais (e o jornalzinho com a liturgia do dia). Os poços são mergulhos no inconsciente, possibilidades de isolamento e reflexão, efetivação da memória, caminhos de transição e abertura ao mistério e… Tantos encontros à borda de um poço ! Jacó e Raquel, Moisés e Zípora, o servo de Abraão e Rebeca e Jesus e a mulher samaritana. Mas não estamos falando de bordas, e sim de fundos. Se o homem é cinco, então o diabo é seis. E se o diabo é seis, então Deus é sete. A tristeza boa vem do pensamento. Qualquer pessoa que pensa é infeliz. A infelicidade é um caminho para cima. A tristeza concentra a mente.
Uma menina explicou que sente demais. Os remédios me tiram na crise e me jogam no nada. Quero voltar a sentir para poder lutar. A luta é para encontrar a tristeza certa e atravessar o inverno e não ficar lutando com as ideias. Encontrar a vocação é descobrir a maneira correta de sofrer. Deixa eu sentir, era o que eu tinha vontade de gritar. Me abraça e me deixa sentir a tristeza. Nunca mais economizar lágrimas.
A tristeza concentra a mente. Os que nela estão imersos não são melhores que os outros, não é privilégio algum, a não ser que essa tristeza seja daquela qualidade que vem do pensamento. Foi Sergei Dovlatov quem escreveu em um de seus contos: "Todo aquele que pensa é infeliz". Quando estamos implicados nessa tristeza, da qual não se deve fugir, fazemos o que temos que fazer com habilidade e esforço incomuns, ao contrário daquelas pessoas que podem se dar ao luxo de viver como querem e sem preocupações. Essa tristeza, como as peak experiences, também tem o poder de suspender o tempo. A tristeza é tão anti-natural que nos dá a sensação de que estamos prestes a descobrir algo sublime. Não há filósofo que não esteve concentrado nesse esforço sóbrio da tristeza. Não há matemático que não tenha sido alfinetado por ela antes de explodir numa descoberta em meio ao silêncio absurdo do universo. Não há poeta que não tenha se ausentado da tirania da felicidade superficial do mundo para colher as palavras no lago gelado da angústia. Não há artista que descubra cores deslumbrantes sem antes penetrar no cinza das reflexões sombrias e secretas que só as almas quase mortas sabem reconhecer. Aqueles cujo caminho foi abençoado pela tristeza tornam-se mestres de seus destinos.
Um dia, o sabiá apareceu morto na sombra do pé de hibisco. Clara gostava muito dele — ficava ouvindo-o cantar, desenterrava minhocas — e ficou muito triste. Fez, então, lama com um pouco de água e terra e perguntou: “Se eu soprar, haverá um outro sabiá?”. Ninguém entende a tristeza dos santos.
A grande sinfonia de tristeza que envolve o mundo também tem sua beleza. A viuvinha que voa pela manhã fria e cinzenta para buscar um raminho de palha seca para dar estrutura ao seu ninho não está simplesmente brincando. Está perplexa diante da necessidade de seus filhotes. A montanha imponente que cobre a cidade e observa os homens de cima parece serena, mas muda e resignada, imersa em pensamentos diante de tanta indignidade. Até mesmo as crianças, em sua ingenuidade, estão mergulhadas em um oceano de tristeza. Observei por meses um menino cheio de alegria, que entrava no ônibus escolar e queria abraçar as outras crianças, dividir o entusiasmo e recolher compreensão. Aos poucos, foi percebendo que nem tudo — ou quase nada — era como em sua humilde casinha, onde era sempre recebido aos beijos e abraços pelos pais e irmãos. Numa sexta-feira — em breve seria três da tarde — observei-o ser rechaçado por dois colegas que não queriam receber afagos. Outras vezes o vi ser desprezado, e de novo, até desistir. Foi aprendendo a ser triste, a sentar em seu lugar com o semblante fechado, quem sabe espreitando por detrás das janelas das casas outras famílias como a sua. Demorará até que descubra a utilidade da tristeza. Eu acredito nisso. À medida que a noite se aprofunda e fica mais escura, a tristeza provocada pelo pensamento vai ser tornando uma forma de filosofar. Observo-o crescendo, chorando, sorrindo e se curvando aos amores, conversando com os anjos sobre a própria solidão, as angústias e as paixões que escondemos uns dos outros, e a maravilha e a dor de nossa mortalidade e do desaparecimento final deste mundo. Antes que o pano caia, que o véu se rasgue num silêncio profundo, e que o mundo se transforme num imenso funeral, ele há de crescer e entender. Nenhuma derrota é feita apenas de derrota — já que o mundo que ela abre é sempre um lugar anteriormente insuspeitado(William Carlos Williams). E há de contemplar entre as árvores, mesmo nos fins de tarde, o feixe de luz — que os japoneses chamam komorebi (木漏れ日)— que desce sobre sua alma sombria e revela a dor que então sente e para a qual não encontra nome, mas apenas o faz lançar um olhar para dentro de si mesmo, onde todos os significados e todas as perguntas sem resposta estão escondidos.
Ninguém entende a alegria dos santos.
Tanto Merly-Ponteau quanto Sartre estão certos e errados quando dizem que a alma é o corpo.
Certos porque a intuição sugere uni-los, embora essa união seja um mistério. Errados porque a lógica manda distinguir, porque de fato não são a mesma coisa.
A ressurreição é da carne.
A alma diz, cheira, nariz, e o nariz cheira. A alma diz, sente, tato, e os dedos tocam. Diz, mova-se, irmão, e as pernas carregam o tronco.
O corpo é um falso insubmisso. Tudo o que quer é obedecer e subir.
Tudo o que sobe, converge. Mas isso pertence ao campo da coisa não dita. Ou da pobreza da coisa dita.
O corpo quer obedecer, e isso é um mistério que a vontade humana precisa descobrir.
71 anos e vou morrer. Meu fígado não funciona mais. O corpo rejeitou o órgão transplantado. Os rins estão falindo. Sei que me vou em poucos dias. Sou um fantasma boiando numa piscina. Minha história está contada. Atravessei o fogo e agora bóio tranquilamente nas águas mansas nos braços do meu amigo. Compus canções, gravei discos, me apresentei ao público em grandes espetáculos nos palcos do mundo inteiro. Encontrei graça e redenção nos braços do amor no fim da vida. O tai chi me reintegrou com a natureza e com o universo.
De qualquer forma, é uma maluquice: 71 anos, prestes a morrer, boiando nas águas mornas de uma piscina aquecida, passando as últimas horas sobre a Terra. E é só nisso que consigo pensar, num momento da infância: “Sabe, eu estava na praia com meu pai e dei a mão a ele. E ele me deu um tapa na cara”.
A gente se cura de tudo, menos da infância. A gente resolve tudo, menos o enigma da paternidade.
Jesus, help me find my proper place;
Help me in my weakness,
'cause I've falling out of grace.
Primeiro show da nova turne de Nick Cave, do inimaginável novo álbum Wild God. Ele toca a canção-título, numa versão ainda mais pungente que a do disco. Uma fã grava e posta no YouTube. O primeiro comentário do vídeo:
— “O Deus Selvagem que levou seus dois filhos…”
James Joyce era praticamente cego e usava uma lupa para escrever. Sofria com enxaquecas excruciantes, dores de estômago e asma. Teve todos os dentes removidos. Alcoólatra, consumia garrafas e mais garrafas de vinho por dia. E escreveu Os Mortos e Ulisses. Eu hoje respondi e-mails debaixo das cobertas, escutando uma música relaxante no Spotify. Até as dez, não havia levantado da cama. Escutei uma meditação guiada pelo app. E nunca escrevi nada que preste. Nunca compus uma canção decente. Sou um fraco. As mulheres são fortes. James Joyce era um forte. Não bastam o talento, a erudição e a argúcia intelectual. Não basta nem mesmo o gênio. É preciso buscar no sangue. Cristo não diz simplesmente: isto é o meu sangue; mas, isto é o meu sangue derramado por vós. Dado que ele é derramado, pode ser oferecido. Não, a literatura não salva. Mas oferece sentido, e para fazê-lo, é preciso estar banhada em sangue. É preciso ter uma oferta. Ai da literatura que é só fonte de inspiração e ideias. Ai da literatura que se presta somente à pedagogia. Que terrível é o homem que faz da literatura apenas seu negócio, seu passatempo e sua oferta de autoajuda. Literatura é ofício de sangue — sacerdócio. O escritor fica onde toda escada sai do chão, na loja do osso, no trapo da emoção (“A deserção dos animais do circo”, W.B. Yeats). No sangue.
Não há repouso senão no sangue. Marcel Schwob, em seu belo A Cruzada das Crianças escreveu que o ouro envelhece na mina de um modo tão perfeito quanto o monge medita no monastério, mas a alma do escritor só envelhece no sangue, a mente do poeta só medita descansando no sangue. Há sangue no sexo, há sangue na morte, há sangue em Deus.
Penso naquele volume que dei ao meu irmão — “Edith Stein na câmara de gás”, do Frei Gabriel Cacho. Será que o ajudou a decidir-se após onze longos anos de discernimento? Afinal, ele também foi, como Teresa Benedita, para a câmara de gás. O mosteiro, como a câmara de gás, também é um lugar onde se vai para morrer. God Alone.
Queria escrever sobre sangue e tristeza nesta carta.
Fora do mosteiro, vivemos dias estranhos. Houve um tempo em que se dizia: que meus jejuns sejam salgueiros sobre as sepulturas; que minha sede se transforme em fontes para ti, pobre viajante. Hoje a pouca comida, o pouco sono, a sede e o desconforto são desprezados entre muitos amigos do esposo. Somos fracos, fracos. Na doença, reclamamos. Reze por nós, que insistimos em não viver no sangue, meu irmão.
Tudo é literatura? Exceto o sacramento. Pois, no sacramento, o símbolo realiza e é aquilo que significa. Ainda assim, a literatura enriquece o sagrado e ajuda a contemplar o mistério sem explicações. Os homens que rezam pouco explicam demais; os que explicam de joelhos, aproximam-se do mistério do sangue com temor e reverência. Ensinam mesmo sem responder.
Torne isso menos dramático, mas é assim. Até a leveza, meus irmãos, tão calvinamente necessária aos nossos tempos, é uma apresentação. Antes de ser oferecida em público, o artista já realizou um trabalho de retaguarda que muitas vezes envolve cegueira, dores, alcoolismo, lutas, preces. Para nós, a agústia; para vós, a leveza.
Quase tudo isso aconteceu, e é tudo ficção.
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Muito obrigado por ter escrito isso e compartilhado conosco, caro Sergio. Muito, muito inspirador. Transformador, até.