A beleza de uma violenta tempestade
Nick Cave ajuda uma jovem artista a lidar com pessoas que não conseguem enxergar nada além de seu entorno ideológico. — Red Hand Files, 247
Presencio neste momento a inspiradora beleza de uma violenta tempestade. Encontrei-me mais cedo com um artista muito bem relacionado. Falamos do meu trabalho. Ele me disse o que eu já tinha escutado antes de outros: que o meu trabalho precisava estar envolvido com a questão sócio-política. As atividades têm hoje em dia de pôr em relevo temas imediatos e "relevantes". Com meu trabalho, procuro realizar algo inefável e atemporal. Porque teria de pôr em palavras algo permeado por uma beleza da qual a linguagem não consegue sequer arranhar a superfície ?
Isabella, Paris, França
Cara Isabella,
Lamento que este homem lhe tenha dado um conselho tão enfadonho. Talvez ele pense que produzir arte que apresente uma determinada visão de mundo seja a única forma de subir na vida. Infelizmente, hoje dia, isso pode ser verdade. No entanto, considero bastante encorajador aquilo que você mesma disse sobre o seu trabalho e posso imaginar que conceitos como "inefável" e "atemporalidade" sejam absolutamente estranhos à visão daquele homem, que parece preocupado apenas com temas correntes e facilidades. Talvez o seu amigo queira que você se conforme ao ponto de vista que ele mesmo defende. Se esse for o caso, infelizmente, ele está lhe dando conselhos a partir do lugar mais raso que se possa imaginar, o seu próprio entorno ideológico.
Desconfie de todos os que negam à arte a sua verdadeira natureza complexa e eterna, instrumentalizando-a para servir às próprias artimanhas políticas. A arte não serve para dar sermões, para repreender ou despreciar pessoas. Resta pouco de sagrado no mundo moderno, mas a grande arte ainda nos oferece uma oportunidade de experimentar o divino, o misterioso e o reverencial. Para mim, a arte verdadeiramente significativa zomba, no seu caminho para a transcendência, dos modos prescritos do dia a dia. Somos humilhados pelo seu poder, pois ela reflete para para nós algo acerca do enigma de nossa própria natureza. Diante dela, quedamos silentes e maravilhados, tocados pelo eternidade.
Deste modo, brindemos à arte, Isabella! Um brinde à liberdade! Mande seu artista bem relacionado fazer as malas e continue a ouvir o seu próprio coração trovejante. Esse som incrível que você ouve é o tremor da verdadeira arte, enquanto ressoa e chama pela tua própria alma.
Com amor,
Nick.
Georgina
Na rua dos cata-ventos, recordei Georgina.
Georgina boa e triste, me puxava os cabelos no banho. Eu reclamava com mamãe de Georgina e de sua brutalidade involuntária, que rachava os vidros das janelas
com a força descomunal de seu braço
Georgina grande e frágil, de lenço na cabeça, de cor mulata amarelada. Seu filho doido catando bingas no chão das ruas.
Georgina desamparada feito um órfão na noite. Indefesa e sem marido.
Georgina, pobre Georgina. Pobre e crente. E sua indisfarçável dor, estampada, talvez a contragosto, em seu rosto triste.
Georgina, minha evocação noturna. Nem sei se você morreu, mas um dia lhe verei no céu.
Para meu pai Carlos (after Vallejo)
Pai, hoje eu estou naquele centro de tratamento intensivo, onde tu me olhaste pela última vez. Lembro que ao retirar os propés te dirigi de novo o olhar, como um náufrago buscando às apalpadelas uma tábua de salvação.
Tu me olhavas fixamente, guardando sei lá que pensamentos de solidão, desterro ou resignação. Um pedido profundo de presença ou uma irreprimível ternura pelo filho perdido? Esse olhar, como um pano de verônica, ficou gravado em mim.
Agora eu me escondo em orações vespertinas recitadas debaixo do chuveiro. Ou entre azulejos, detergentes e vasilhas, e espero que tu me encontres. Na sala, tu, de jornal em punho, com as sagradas palavras cruzadas, o livrinho da liturgia e o terço desbotado.
Eu, nesse jogo de esconde-esconde que fiz questão de brincar durante toda a nossa vida.
Carlos, tu te escondeste. Não uma noite em agosto, mas a vida inteira. Em tua ocultação, te tornaste onipresente: nos fazes uma falta sem fundo! E meu gêmeo coração ainda te busca, e geme de arrependimento nas tardes das outras tardes em que não percebera que tu eras uma dádiva breve e peregrina.
Escuta, pai, tardes a voltar. Não voltes, certo?
(Pois o mundo inteiro está prestes a desmoronar)
Memória
Uma estrela é apenas a memória de uma estrela,
E você é uma memória de Deus flutuando na superfície da escuridão.
Um cachorro atravessa a estrada, os pássaros pastam nos ares,
Nas cercas, as flores acenam,
E você é uma memória viva de Deus no sopro silente que varre a manhã.
Um cachorro atravessa a estrada e lhe acompanha,
A neblina desce pelas encostas, prefaciando o sol que em breve dissipará tudo,
Um resto de noite entre o barranco e as samambaias,
O orvalho nas folhas e nos cipós,
E a própria neblina, que agora é somente um fio de existência,
Quase invisível, como você, pálida lembrança
Da humilde altivez que pisoteava espinhos e abrolhos.
E um cão negro atravessa a estrada e lhe acompanha.
Me emocionei quando escreve sobre seu pai. Sempre tive um grande amor por ele, e o que nos conforta é que iremos nos reencontrar na Vida Eterna. Fica com Deus Sérgio, como sempre, um excelente escritor. Abraços! Tulio
Esses três poemas são MUITO bons, Sérgio! Gostei demais.