A Sense of Wonder
Em memória de Jaime Royal "Robbie" Robertson ( 5 de julho de 1943 Toronto — 9 de agosto de 2023)
Robbie, Richard, Garth, Levon e Rick estavam há dias em cima daquele mesmo tema. O baixo pulsava grave, ditando o ritmo. Levon e Richard cantarolavam vários la la las tentando compor a melodia sobre a base. Eram cantores melhores do que Robbie. Isso lhes dava esse direito. A luz do sol invadia o lado esquerdo do porão através de uma pequena abertura, da qual fora feita uma janela. Robbie estava um pouco bravo consigo mesmo, porque àquela altura do campeonato já devia ter uma letra para a canção. Todo fim de tarde punha-se naquele montinho gramado ao lado da Big Pink, bebia sua cerveja e fumava, observando a paisagem estacionada diante de seus olhos. No seu quarto, insistia tec tec tec em cima da máquina, e nada.
O órgão Hammond delineava uma melodia que parecia ter vindo do paraíso. Às vezes um sentimento de admiração tomava conta de Robbie. Como se a inspiração pudesse nascer de algum lugar de onde nunca viera. Para além daquele rio louco que corria um pouco distante dos arredores da Big Pink. Eu sou um homem com um destino claro. Eu sou um homem com uma grande imaginação. E perdia-se entre acordes e sonhos.
O homem chegou numa sexta-feira, pela manhã, com seu violão a tiracolo, e estava num daqueles dias de total imersão em seu mundinho particular; mal cumprimentou o pessoal da banda e já estava no porão (que servia de estúdio). Com um pedaço de papel na mão, andava pra lá e pra cá, com a camisa amassada e para fora das calças. De vez em quando parava, tentava alguns acordes e balbuciava sons ininteligíveis, dava um trago no cigarro e olhava para o papel. A única palavra mais articulada que dirigiu a alguém foi para pedir a Garth que tocasse um sol no teclado. Acompanhou-o com o violão, fez uma levada, sussurrou uma melodia e voltou para o seu canto. De repente, só Robbie continuava a observá-lo, enquanto a banda já tinha voltado a tocar. Colocava uns acordezinhos aqui e uns dedilhados acolá, mas não tirava os olhos do cantor, que em silêncio, parecia alheio a tudo. Sem perceber, num desses típicos apagões da consciência, Robbie deixou-se envolver por um groove de Rick e Levon e nem percebeu que ele havia deixado o recinto. Procurou-o por todo o porão. No lugar onde estivera agora existia um vazio. Tinha ido embora. O sol, a pino àquela hora, não só brilhava, mas injetava o calor na plena manhã de Woodstock. Por sobre o banquinho, lá estava, pousado, um pequeno pedaço de papel com as palavras que o cantor fanhoso com faro de poeta não parava de observar enquanto dedilhava o violão e sussurrava sua glossolalia particular. Robbie torceu para que a levada terminasse logo, mas os dois parceiros estavam bem empolgados e esperando que ele fizesse a sua parte numa possível canção que talvez estivesse nascendo. Mas o guitarrista não conseguia tirar os olhos do papelinho. Assim que os dois amigos pararam, colocou a guitarra sobre o case, voou para aquele cantinho e leu uma única frase escrita com tinta negra borrada no papel amassado: "Não carregue um peso maior do que a sua força”.
“Para piorar tudo”, disse imediatamente, “a gente tem complexo de Sábia Criança. A gente nunca saiu da porcaria do rádio. Nenhum de nós. A gente não fala, a gente palestra. A gente não conversa, a gente expõe. Pelo menos eu sou desse jeito. Assim que eu entro em algum lugar com alguém que tenha o número normal de orelhas, eu me transformo ou num profeta ou num disco humano. O Príncipe dos Chatos.
"Zooey", J.D.Salinger
Sábado. Robbie chegou antes de todo mundo ao porão, empunhou sua guitarra, acariciou lentamente as cordas e começou a rascunhar… Passara a noite cantarolando uma melodia em seus sonhos. Como um pescador noturno, talvez um urso negro, tentando apanhar com suas patas grosseiras alguns peixes para aplacar sua fome voraz. Um urso esbofeteando a água do rio em busca de trutas e salmões. Teve um devaneio noturno no qual entrava numa sinagoga... O rabino proferia a prédica. Ele, uns seis anos, apertava a mão lisinha e macia da mãe. Quando todos se sentaram, em meio aos cânticos e orações, observou um papelinho voando até pousar defronte ao altar. Largou a mão da mãe e abaixando-se, esgueirou-se entre os bancos, avançou sobre o corredor central, subiu a escadinha ro altar arrastando-se, e ficou de frente para o pedacinho de papel. Agora ele tinha o formato de um rolo, um pequeno rolo, depositado numa manjedoura de presépio. Detrás do pé de mármore do altar, viu sair, lentamente, como um gato que espreita sua presa, um homenzinho com uma pequena tocha acesa nas mãos. "Ele vai tocar fogo na manjedoura e destruir o discurso de Deus", disse uma voz vinda do alto. Olhou para cima. A voz vinha de um dos anjos de madeira que ficavam na abóbada sobre o altar. O anjo começou a planar e a descer lentamente. Se aproximou e colocou-se entre ele e o homenzinho. O pequeno Robbie sentia que se parasse por um segundo de vigiar, o homenzinho destruiria o rolo. O anjo voou até a manjedoura e, num movimento surpreendente, enfiou-lhe na boca o discurso e obrigou-o a mastigá-lo, degustar sua doçura e e em seguida, engoli-lo. No estômago, ardeu-lhe como uma úlcera e fez subir um amargor à garganta. "Não é preciso falar; desce ao teu estômago, rumina, medita, digere. Depois escreve. A isto és obrigado." O homenzinho tocou fogo na manjedoura, mas o rolo estava a salvo. Ele voltou para o banco e apertou novamente as mãos da mãe.
Robert ligou o microfone e tentou lembrar o que havia escrito. A guitarra parecia um pouco fora do tom. Afinou-a. Algo ainda não saía bem. As palavras… Havia uma espécie de sombra em tudo o que fazia. Esforçou-se. Uma, duas, três vezes. Mudou um pouco o que havia escrito. A letra, que pensava estar pronta, era um quase-nada, ou era muito pouco. Da outra vez terá mais sorte.
Quis falar uma coisa,
falou outra, Urso,
tu trouxeste, não a truta,
mas outro bicho visguento. Vai, morde,
crava tuas unhas, tuas presas,
come
e dá-te por feliz.
Os membros da Banda foram chegando um a um, e aos poucos cada um foi plugando seu instrumentos. Começaram a tocar. Era Robbie quem sempre ditava as regras, pois chegava com a canção quase pronta, ou com a melodia resolvida e já com alguma parte da letra. Robbie foi puxando o tema já trabalhado exaustivamente durante a semana. E logo a banda foi entrando. Já estavam o suficientemente entrosados. Só faltava mesmo criar o arranjo da guitarra, pois Robbie andava disperso. Mas aos poucos foi surgindo um riff, e logo alguns arpejos e licks. Robbie começou a solfejar no microfone. Ele queria que Richard cantasse a canção, mas precisava ensinar a letra, as estrofes e o refrão. Talvez fosse a melhor letra que já tivesse escrito, pensou. Ele não era Dylan, nem queria que o motoqueiro acidentado aparecesse ali naquele momento, pois morreria de vergonha, mas fez tudo como se o próprio xará o fizesse. Afinal, sabia que não poderia, e nem queria mais carregar um peso maior do que pudesse suportar. Assim o testemunho corcoveia, a confissão nos escorrega e a verdade, cardume brilhoso, passa contente por nós.
Depois de meia hora de ensaio, a canção parecia pronta. Robbie se achegara a Richard. Levon também parecia querer cantar, mas essa definitivamente não era pra ele. Richard já decorara parte da estrofe e do refrão. Robbie entregou-lhe o papel com a letra inteira. Acenderam os cigarros, apareceu um vinho. Todos estavam satisfeitos., A canção recebeu o título de A sense of wonder e acabou entrando no primeiro álbum da banda, Music from Big Pink, e se tornou seu segundo maior sucesso, perdendo apenas para The Weight. Robbie ainda não gostava totalmente dela, talvez ainda mexesse em alguma coisa nas estrofes e até no arranjo e na melodia. Ele ainda sonhava com as canções mais perfeitas de Dylan, das Staple Singers e de Chuck Berry, mas sabia que havia feito tudo o que podia fazer. O sol iluminava as colinas vazias na tarde de Woodstock.
Quis falar, quis falar,
mas urrou como um urso
com as patas no ar.
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* O poema que aparece no conto é “Pesca e linguagem”, de Wladimir Saldanha