Como você vive?
Um diário de impressões e apontamentos sobre a vida e sobre as obras que adornam a vida
You've got to just
Keep on pushing
Keep on pushing
Push the sky away
Push the sky away, Nick Cave
1.
Era um dia calmo. Todas as coisas descansavam em plácida harmonia. Fomos à missa, nos reunimos com a família, as horas seguiam de forma tranquila e comum. No momento de dormir, o menino cochilou no colo da mãe e acordou daquele primeiro sono perguntando sobre a morte, quando você irá morrer, porque é que a gente tem que morrer, eu vou morrer também, mamãe?
Ao lado, no mesmo sofá, eu assistia ao The Who tocando Heaven and Hell na Ilha de Wight:
On top of the sky
Is a place where you go
If you've done nothing wrong
And down in the ground
Is a place where you go
If you've been a bad boy
Why can't we have eternal life
And never die?
Never die?
Às vezes a gente quer chamar esse fenômeno de sincronicidade para parecer sofisticado, mas parece que é só a providência mesmo.
Fiquei refletindo sobre o que poderia ter despertado, em um garoto de quatro anos, o espanto doloroso da finitude… uma conversa, um vídeo, ou talvez… O Menino e a Garça, de Hayao Miyazaki! Carlos assistiu comigo, nesta semana, a boa parte do filme — um espetáculo visual de beleza e poesia. O tema da morte da mãe é central, e ficou marcado na alma do menino. É assim que Miyazaki forma filósofos, poetas e artistas. A beleza provoca uma ferida, seja aos quatro ou aos oitenta. Uma ferida de caráter indelével. Não deixem seus filhos assistirem a esse japonês. Eles vão começar a pensar na morte cedo demais.
2.
O leitor é um fingidor,
Finge tão completamente,
Que chega a fingir que é sua,
A dor que o poeta sente.
A dor do poeta é verdadeira pra caralho.
4.
CONDIÇÃO HUMANA
Um senhor de meia idade, reconhecendo uma senhora que também já estava quase lá, exclamou:
— Olá, há quanto tempo! Você é a Aparecida, não é?
— Olá, tudo bem? Não, eu sou a Eva.
5.
REAL
Um varredor de rua comenta com um transeunte que não se abaixa mais para pegar moedas de dez ou vinte e cinco centavos que encontra no chão; simplesmente varre tudo para o lixo.
6.
"Um subtítulo moral adequado — ou quase perfeito — para a novela Sonhos de Trem, de Denis Johnson, seria O homem que se recusou a virar bicho.
Logo que comecei a ler o livro, notei nele um espírito semelhante ao que percebi em Vidas Secas, que, se não é um dos livros da minha vida, talvez seja um dos que mais se tenha se integrado ao meu universo imaginativo. O famoso episódio, “Fabiano, você é um bicho... Você é um homem”, transfornou-se em uma espécie de eco literário que vira e mexe aparece sem ser invocado nas situações diversas da vida. É impossível enumerar quantas vezes ouvi a voz de Graciliano pairando sobre os acontecimentos: Sérgio, você é um homem; Sérgio você é um bicho. Salinger disse que bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler e fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que der vontade.
Eu nunca quis ser amigo de Graciliano nem ligar para ele. Nem preciso — a voz dele ficou aqui comigo. E está aqui. Esse é poder da literatura. Sobre a comparação da novela de Johnson com o clássico de Graciliano, meu amigo Mariel vaticinou: “Um livro muito bom! É melhor escrito que Vidas Secas — o que é tanto elogio quanto defeito.” Eu mesmo, não saberia dizer. Sei que Vidas Secas permanceu em mim; só o tempo dirá se o livro de Johnson também.
Sonhos de Trem trata da epopéia íntima e pessoal de Robert Greinier, um operário na construção de estradas no oeste da América rural do início do século XX. Greinier perde a esposa e a filhinha em um incêndio e precisa continuar sobrevivendo, em meio às perdas, ao luto e à cruel passagem do tempo, enfrentando uma paisagem inóspita enquanto luta contra a lenta desintegração de tudo ao seu redor.
Greinier, como um Fabiano mais consciente, luta. É é justamente sua decisão de esperar contra toda esperança e seguir em frente com suas convicções — no fundo, reflexo de um amor inquebrantável —, e continuar insistindo em ser homem, sem se deixar arrastar pela selvageria circundante, o que mais me tocou nessa belíssima e magistralmente escrita novela. Robert Greinier, apesar de ter certo parentesco com lobos e viver cercado por seres que são meio animais, meio homens — e, em algumas ocasiões, uivar literalmente como um animal — opta por continuar sendo homem.
Essa insistência do humano contra a animalidade foi o que me fez conectar Greinier ao protagonista de Graciliano. Greinier, Fabiano, eu e — talvez — você, diante da selvageria da vida, do fogo que consome e reduz tudo a cinzas, da doença que corrói o corpo ou mina a mente, poderíamos escolher a recusa disfarçada de dignidade da morte deliberada, num gesto aparentemente soberano que rejeita a bênção não solicitada da dor, ou optar pelo instinto brutal da animalidade e seguir o chamado primitivo do corpo. No entanto, escolhemos prosseguir, mesmo sem saber aonde a estrada da vida nos levará.
Nossos atos nem sempre serão límpidos — a consciência é devastada antes de se expandir. Optar por prosseguir, mesmo na noite escura dos sentidos e dos afetos, é o verdadeiro gesto adulto e amoroso. Não há dignidade maior do que proseguir, apesar da fome, da memória obscurecida pela tragédia e pelo luto, dos pés atolados na lama do pecado e da dor, da negação de tudo — prosseguir.
A vida é a afirmação e a aceitação do inegociável: a morte não é o fim, sua plenitude se encontra na meta-história. A existência é o rascunho da própria vida, e sua finitude é a saída da caverna.
A jornada de Robert Greinier é uma negação da morte. Não uma recusa ou um terror diante da finitude, mas uma certeza — sustentada, por vezes, por um fiapo de liberdade interior — de que desistir não é uma opção e de que é preciso prosseguir com determinada determinação.
A vida de Robert Greinier não é a de um herói, tampouco a de um santo. É a vida comum de um homem mergulhado nas agruras de seu tempo. Talvez o grande insight de Johnson, como todo grande ficcionista, tenha sido revelar o mundo interior de Greinier sem violá-lo. Sua escrita, realista e, por vezes, brutal, mantém uma delicadeza lírica, sem recorrer a psicologismos. Johnson narra com precisão, e é assim que vemos na vida de Greinier o que eu chamaria de elegância. A existência de Robert Greinier é uma lenta descoberta — que talvez nunca se concretize — da consciência de ser um eleito. Ele recebe, mas também escolhe; é arrastado pela dureza e pela desgraça, mas decide. Recebe a vida, mas escolhe vivê-la; é levado pela tragédia, mas elege continuar.
Ninguém disse que prosseguir é sinônimo de alcançar a felicidade; é apenas continuar caminhando. Até aquele tempo desaparecer para sempre.
7.
Falando em animalidade, o tema do suicídio animal é complexo. Em linhas gerais, os animais não cometem aquilo que pode ser chamado de suicídio propriamente dito, pois lhes falta a capacidade de empreender uma reflexão consciente, ao menos do modo como ocorre com os seres humanos. O suicídio dos escorpiões, por exemplo, é um mito.
Se Fabiano e Greinier lutavam com a questão ser bicho/ser homem, Yozo, protagonista de Declínio de um Homem, de Osamu Dazai, é um sujeito que possui uma profunda consciência de si, do mundo e daquela presença — ou ausência — que chamamos de Deus. O declínio humano, nesse caso, não é uma queda até a animalidade, mas a consequência do aprofundamento de uma consciência obnubilada — mas, ainda assim, uma consciência. Yozo age com consciência da sua farsa e, sobretudo, percebendo o quanto há de trágico em sua farsa.
Yozo se sente incapaz de qualquer forma de transcendência— é uma pessoa perdida e absolutamente isolada das atividades humanas. É como se um ser humano pudesse nascer com um defeito de fabricação, pois a característica mais essencial do homem é sua capacidade de se abrir ao outro, ao mundo e ao Absoluto. Sem isso, o homem é um ser espiritualmente mutilado.
Yozo, no entanto, parece não conseguir criar vínculos interiores com nada nem com ninguém. Quando criança, esforça-se ao máximo para chamar a atenção com comportamentos cômicos e palhaçadas. É a válvula de escape que encontra para disfarçar a sua profunda inadequação. Aqui está a verdade que eu escondo dentro do peito: por fora, eu rio e faço rir, enquanto, no fundo, ter uma alma sombria é inevitável, dizia em segredo a mim mesmo. Sua solidão é brutal. Ninguém entende o que se passa com ele e ele acha estranho tudo o que se refere ao mundo e aos homens. É um isolamento sufocante desde o despertar de sua consciência, ainda na infância. Essa incapacidade de abertura da alma significa o absurdo da ausência de uma vocação. Yozo é um homem sem vocação. Nada tem sentido além da busca do prazer e do entorpecimento que lança uma nuvem efêmera sobre a percepção de sua condição. Quando esgotarem esses recursos — do prazer e do embotamento da consciência —, tudo o que restará é a morte.
Para Yozo não há vocare, não há voz nem palavra. Ele não ouve a canção do vento, nem o chamado da humanidade, de um ser amado próximo, da história ou de Deus. Não existe um sentido na vida, nem dado nem criado.
E o declínio de um homem é exatamente essa espiral descendente de solidão e isolamento até o mais alto grau de desumanização.
O que resta de humano em Yozo é seu debate interno, suas conjecturas, suas tentativas, enquanto ele nada de braçada em braçada em um mar de angústia e decepção, até que o fim chegue. Há uma luta, e o livro — que consiste em três cadernos, uma espécie de diário em que Yozo que registra sua trajetória — é um vislumbre e o cumprimento desse terrível destino. Yozo representa o declínio de um homem, mas não é um covarde. Para ele, o suicídio não é uma fuga, mas o fim de uma jornada sem volta.
Embora no Japão exista uma tradição que associa o suicídio à honra — dos samurais que praticavam o harakiri aos kamikazes — e em nosso tempo se busque conferir uma certa dignidade ao ato, no romance de Dazai não há traços de honra ou nobreza: apenas decadência, vergonha e autodesprezo. Talvez por isso Patti Smith tenha dito que toda a obra de Dazai é digna. Ela é um testemunho da alienação e do desespero existencial do homem incapaz de sair de si e que caminha em direção à morte. Se Dazai escreve com maestria sobre temas tão dolorosos e deprimentes, a ponto de seu livro ter se tornado um best-seller, a beleza que encontramos aqui se encerra unicamente na literatura e não na questão existencial. Não se deve adentrar essa noite acolhedora com doçura.
O livro de Dazai é, de fato, uma obra-prima, mas tão desesperador que, ao começar a leitura, pensei que talvez não conseguisse concluí-lo. Já ouvi mais de um relato de pessoas que entraram tiveram febre durante a leitura de Crime e Castigo. O Declínio de um Homem não me deixou em um estado febril, mas coincidiu com uma gripe violenta, daquelas que derrubam o sujeito. A gripe minava o corpo; o livro, a alma. O descompasso completo entre o protagonista e tudo o que o circunda é desolador. Yozo é uma espécie peculiar de “homem do subsolo”: tudo o que é humano lhe é estranho e causa repulsa. Estamos diante da desumanização de um indivíduo, o declínio de um homem incapaz de acessar os fundamentos de tudo o que é humano — até as raias do desespero. A desumanização do homem também é sua desdivinização.
8.
The Red Hand Files - Issue #302 / October 2024
O que é preciso para ser livre?
JAI, MELBOURNE, AUSTRÁLIA
Caro Jai,
Estou sentado na varanda de um hotel com vista para a cidade de Lisboa, conderindo as perguntas que chegaram. Talvez seja o sol português de fim de outubro, ou o fato de estarmos curtindo um inesperado dia de folga (obviamente uma falha de planejamento), mas sinto que é hora de voltar aos The Red Hand Files. A turnê irá continuar, mas os Files estão chamando, e sua bela pergunta me saltou aos olhos, pedindo uma resposta.
Como compositor, o que busco em primeiro lugar é a liberdade artística — liberdade de expressão, crença e imaginação. Para que eu possa buscar esses tipos de liberdade e me sentir verdadeiramente livre, paradoxalmente, é necessário certa medida de ordem e restrição. Sinto-me mais livre para me expressar e acessar uma imaginação mais fértil quando certos limites estão presentes. Como muitos de vocês já sabem, sigo alguns protocolos para estimular minha mente criativa — sento-me à mesa no meu escritório e escrevo, trabalhando exclusivamente entre 9h e 17h. Dentro desse “horário comercial”, minha mente se torna verdadeiramente livre, e experimento uma criatividade qualitativamente mais rica do que em qualquer outro momento em que vivo fora desse período, no mundo desordenado e cheio de distrações. O que para alguns pode parecer trabalho forçado é, para mim, o espaço onde toda a especulação imaginativa, a beleza e o amor podem florescer. A liberdade se encontra na sobriedade. A desordem, a aleatoriedade, o caos e a anarquia são os lugares onde a imaginação vai sendo minada, conforme pude observar.
Isso também vale para a fé e para a liberdade de crença. Sinto que, no caos do mundo, há uma espécie de “espiritualidade” vaga, um sentimento que, de forma latente e metafísica, carrega a presença implícita de Deus. Mas é somente na igreja – essa instituição humana tão falível – que me sinto verdadeiramente livre espiritualmente. Sou envolvido por uma narrativa poética, simultaneamente verdadeira e imaginativa, completamente participativa, onde minha imaginação espiritual pode ser, ao mesmo tempo, contida e livre. A igreja pode parecer, para alguns, um espaço restritro, até sufocante, com sua congregação que se assemelha a um rebanho. Ainda assim, em sua arquitetura, música, litanias e narrativas, encontro um espaço de profundo reconhecimento e libertação espiritual.
Pensando bem, o mesmo pode ser aplicado ao casamento — outro feito audacioso da imaginação — que, para alguns de nós, assim como a arte e a fé, dá forma ao que é amar. É a própria ordem que nos permite ser livres.
Claro, Jai, esses são pensamentos totalmente subjetivos. Muitos criadores, especialmente os mais jovens, podem sentir que sua relação caótica ou desordenada com o mundo é indispensável para a liberdade criativa. Quanto mais anárquico, melhor! Contudo, após uma experiência considerável nessa área, vejo que isso nunca funcionou para mim. Passei a entender que o músculo da imaginação se fortalece através da resistência, da disciplina e da ordem. Esses vínculos institucionais acabam por se tornar uma forma de libertação, onde nossos sonhos, despertos e concentrados, podem encontrar seu foco e fluir livremente.
Com amor,
Nick
*
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Quando leio algo que me chama à Vida, lembro-me de quando brincava sozinho no quintal de areia, enterrando brinquedos ou comendo folhas de ciriguela, e ouvia uma voz profunda me chamar. Não sei de onde, talvez de lugar nenhum; no entanto, era feliz o sentimento de saberem meu nome e, ao ser chamado, ter para onde ir.
Obrigado, Sérgio!
Sempre excelente. Obrigado.