Ficamos sabendo, há alguns dias, que Brian Wilson, o líder dos Beach Boys, foi colocado sob tutela após um diagnóstico de demência, menos de um mês depois da morte de Melinda Ledbetter, sua esposa e empresária, que cuidava do cantor. Wilson é um gênio criativo, cuja mente jamais deixou de criar, mesmo depois dos primeiros colapsos nervosos e de diversos problemas mentais e intervenções psiquiátricas. Sem ter condições de continuar com a banda ao vivo ou mesmo nos estúdios, Wilson jamais deixou de ser ativo como compositor, arranjador, produtor e idealizador do som e da estética dos Beach Boys. Depois de um período recluso e dos tratamentos polêmicos com o psiquiatra Eugene Landy, Wilson deu prosseguimento a uma brilhante e prolífica carreira solo que gerou obras-primas como seu autointitulado primeiro disco solo, de 1988, parcerias com Van Dyke Parks, a versão definitiva do clássico dos Beach Boys, “Smile”, um disco de Natal, um disco com canções de Gershwin, outro com músicas de trilhas sonoras da Disney, outro ainda com versões de suas próprias canções ao piano, além de todos os belos álbuns autorais. Wilson jamais deixou de trabalhar. Agora parece que sua mente pediu descanso. Ele tem 81 anos. Estava planejando lançar em 2025 um álbum de música country, “Cows in the pasture”, que ficou perdido nos anos 70 e que começou a ser gravado junto com o belíssimo “Sunflower”, dos Beach Boys.
Talvez essa notícia sobre a demência de Brian Wilson tenha me afetado mais do que as passagens de outros artistas que admiro, que têm partido aos montes nos últimos anos. Eu ainda estava remoendo a desaparição de Damo Suzuki e, meditabundo sobre o selim da minha bicicleta, numa tarde que prometia ser bonita, fiquei a pensar em que significado poderia ter o fato de uma mente tão maravilhosamente criativa ter entrado em colapso. Em que espécie de limbo estaria ela agora navegando? Para onde terá ido toda aquela energia criativa? Continuará operando?
Parece que a falecida esposa de Brian Wilson havia descoberto o segredo para manter sua mente ativa: talvez tenha proporcionado a ele a capacidade de deixar fluir a criatividade, de fomentar o ato de criar e de manter viva a missão de espalhar beleza pelo mundo.
Tenho um amigo com espectro autista. Me parece, do mesmo modo, que o que mantém aquele rapaz de pé, caminhando, estudando e se devotando à vida, é justamente o fato de criar o tempo todo. A criatividade é a pulsão que o mantém vivo e ativo na sociedade. Tocar, cantar, desenhar, escrever roteiros para peças de teatro ou filmes (ainda que, muitas vezes, imaginários) é o que o faz progredir e o mantém ativo, ocupando um papel principal no teatro da vida. É outra mente que se nega a parar de criar. A arte é uma produtora de sentido.
Na verdade, a criatividade é uma das necessidades mais primárias do ser humano. O élan vital é o desejo de criar. É o que torna o homem mais humano e, por isso mesmo, mais próximo do divino. Criar é o selo de identidade do homem, sua imagem e semelhança com Deus. No livro bíblico do Gênesis se conta que Deus se regozijava contemplando a sua criação e vendo que tudo o que criava era muito bom. Essa realização pós-criação é uma das mais belas prerrogativas divinas. Deus, que criou tudo por amor, fez o homem à sua imagem e esperava que ele fizesse o mesmo: criasse por amor ao Éden. Ser guardião do jardim, dar nome aos animais, cuidar da criação e, depois da queda, trabalhar com o suor do próprio rosto, significa, em resumo, ser um artista. O homem é um artista, nasceu para criar. A arte é o segredo bem escondido de toda vocação.
Makoto Fujimura, falando sobre a reflexão teológica, explica que ela tem muito a dizer sobre compreender conceitos muitas vezes complexos como encarnação e salvação. Mas isso por si só não faz com que a teologia se encarne em nossa realidade: “É aqui que um artista pode ajudar. Criadores têm experiência em navegar na lacuna entre as ideias e a realidade. Os criadores nos ajudam a amar mais profundamente”.
Essa semana, perdi uma pessoa por quem tenho profundo afeto. Outro criador inveterado, já vergado pela vida, em seus mais de noventa anos. Um homem simples, do interior, que não será reconhecido pela sociedade por seu inconformismo em relação à mediocridade. A vida não costuma oferecer compensações, mesmo aos que contribuem para fazer do mundo um lugar menos inóspito. Esse homem foi daqueles que nunca se deixaram moldar pelo conformismo vigente. Ele nunca aceitou ser igual a todo mundo e buscou, ainda que às apalpadelas, na religião, nas artes plásticas, na poesia, na música e até mesmo na espeleologia (exploração de cavernas) seu lugar no mundo. O entusiasmo com que me falava de suas descobertas nas longas conversas que tivemos, era contagiante. Eu gostaria de conseguir transmitir essa curiosidade e esse inconformismo aos meus filhos. Sem isso, somos incapazes de criar. E sem criatividade, não há amor, não há inteligência, e a vontade de viver acaba arrefecendo. Não podemos viver como zumbis diante das telas.
Antes de concluir esta breve crônica semanal, que tem sido quase sempre um manifesto a favor de algo — da escrita, do "faça você mesmo", da arte — me vi contemplando outra tarde que prometia ser bela e me pus a ouvir aquela canção do primeiro disco de Guilherme Arantes, "Antes da chuva chegar". Eu adoro músicas assim curtinhas, com harmonias e melodias marcantes, repletas de significado. Esta sempre mexe muito comigo. Ela possui aquele clima progressivo, característico dos anos 70, normalmente associado a suítes longas, mas ela mesmo mal ultrapassa os dois minutos. Isso a torna ainda mais linda - parece que vai durar, mas logo acaba. E é perfeitamente construída, com a voz quase imaculada de um jovem, nostálgica, mas apontando para o futuro. Ela me lembra da efemeridade da arte, que, no entanto, é eterna, porque bela; a arte longa. E quando chega o verso "Vejo a casa na qual me criei, vejo a escola, o jardim...", me identifico profundamente. Meus olhos ficam marejados. É o assombro, a emoção, a comoção.
A arte não nos permite aposentar. Outro dia, postei no Twitter a nova música de Neil Young, a poderosa "Broken Circle (Over and Over)", e mencionei que o atual guitarrista da Crazy Horse é Nils Lofgren. Alguém perguntou: "E o Frank Sampedro?" Ao que respondi: "Ele se aposentou." Depois, fiquei pensando: como alguém se aposenta da música? Como alguém se aposenta da arte? Ela nos arrebata, nos leva ao êxtase, nos preenche de prazer e nos oferece epifanias. Enquanto formos capazes de ser arrebatados, não poderemos nos despedir da arte. Nem eu, nem você, nem a mente de Brian Wilson.
Um verdadeiro alento, meu amigo, muito obrigado.