Recentemente, ouvi uma pessoa citando Patti Smith: “Se você é um escritor, escreva!” Alceu Amoroso Lima sugeriu a Antônio Carlos Villaça: “Escreva todo dia!” Escreva para rasgar, escreva para jogar fora, escreva para você mesmo, escreva para publicar, escreva para entender o que você está pensando. Eu andei pensando em para que serve esta newsletter a não ser para conversar com meus leitores, que, em geral, são amigos, conhecidos e pessoas espiritualmente próximas (espero que as distantes também venham).
Também escutei outra pessoa dando um conselho bem bonito e acertado: “Escreva coisas simples para dialogar com os leitores. Talvez esse seja um caminho para nos tornar os escritores que seremos”. Já pensei muito nisso, de ser escritor. Sempre resisti a me classificar como escritor. Foi justamente Patti Smith quem me deu esta noção: escritor é quem escreve. E se você for um escritor, escreva. Pare de pensar em classificações ou em profissão: escrita é vocação. Há milhares de escritores na história que morreram sem publicar. Hoje temos as redes sociais e as newsletters para registrar nossas experiências e tentativas. Eu não vou publicar obras-primas aqui nesta newsletter, mas não vou deixar de escrever coisas simples para dialogar com os leitores: uma digressão a partir de uma conversa com um filho, um fluxo de consciência que surgiu a partir da visão de um passarinho atropelado por uma camionete, ou simplesmente impressões surgidas através do deslumbre causado pela beleza da aparição de uma árvore de flores amarelas à beira da estrada.
Em “Devoção”, Patti Smith fala sobre escrever “sem a marca da inteligência vulgar”. Você não é todo mundo. Se é chamado a escrever, é porque você tem uma voz. Foda-se o estilo. Não se preocupe com o estilo. Só escreva. Escreva sem parar. Escreva hoje num guardanapo e jogue fora quando for ao banheiro mijar. Ninguém vai achar seu poeminha tosco daqui a vinte anos e te achar um gênio. Você não escreve porra nenhuma. Mas às vezes sai umas coisas bem legais. Dane-se o estilo. O estilo vai aparecer. O estilo é a voz.
Escreva, se você é escritor. Você sabe. Não sabe se é escritor, mas sente em si essa necessidade de se expressar. Você não sabe pintar, nem cantar, nem tocar um instrumento. É difícil pra você… Mas você tem um celular nas mãos e sente o impulso de escrever. Não é reclamar nas redes sociais nem perder tempo “produzindo conteúdo”, é uma necessidade obsessiva de colocar na folha em branco as expressões da vida interior (nunca mais esqueci de Lya Luft, essa escritora que os sofisticados adoram desprezar, dizendo que escritor tem que ter vida interior). Até uma vida desinteressante e monótona é fonte de impressões. Graças a Deus hoje existe a internet e os aplicativos. Dane-se se a internet deu voz aos idiotas. Os idiotas sempre tiveram voz. Umberto Eco também era um idiota. Sempre vai ter alguém dizendo que você não pode escrever porque comete erros. Os melhores escritores cometem erros. Os revisores que o digam. Escreva. Vai ter outro punhado de gente dizendo que você não deve ligar para o “preconceito linguístico” e escrever errado sem pudor. Balela. Erro é erro. Corrija sua escrita. E escreva. Escreva porque você não pode somente viver. A tia da esquina pode, o vendedor de pipoca consegue, alguns de seus amigos e parentes também conseguem viver sem escrever. Alguns advogados, que ganham a vida com isso, conseguem. Mas pra você não basta, você tem que escrever.
Dizem que Paulo Francis não tinha o texto tão bom porque sempre escrevia com pressa por causa do prazo do jornal. O estilo é o estilo possível. O editor de Raymond Carver limou seus primeiros contos até reduzi-los ao que ficou conhecido como minimalismo. Nem sempre se pode sozinho. Clarice, absolutamente genial, tinha lacunas enormes em sua formação. Não desista porque não leu Guerra e Paz. Quase ninguém leu. E muitos dos que leram escrevem mal. Escreva, se você é um escritor.
Não é fácil encontrar o próprio estilo e soar autêntico e verdadeiro. Estou eu aqui de novo pensando em estilo. Foda-se o estilo. J. D. Salinger descobriu o seu a partir das próprias experiências: jovem imerso na cultura de seu tempo, voluntário na II Guerra, interno em um sanatório para doentes mentais. Sua prosa coloquial, mas sofisticada, versa sobre o trauma deixado na alma do ser humano diante da atrocidade da guerra, o drama das relações em meio às dificuldades do amadurecimento e o mistério e a profundidade da religião.
Os livros de Salinger têm me acompanhado durante a minha vida inteira, desde que peguei na estante da biblioteca municipal da minha cidade um exemplar surrado de O Apanhador no Campo de Centeio, antigo volume da Editora do Autor, há mais de três décadas. Curioso é que esse exemplar sumiu da estante da estante da biblioteca e nunca mais apareceu. Mas da minha cabeça e da minha alma ele nunca mais foi embora. Adquiri depois outras duas edições, mas o choque daquela primeira me marcou. E o estilo de Salinger no original é um deslumbre. Só muitos anos depois, passei aos demais textos, os contos e as novelas, a verdadeira obra-prima de Salinger, onde seu estilo se solidificou. Eu não teria o mínimo de maturidade para ler , por exemplo, “Um dia perfeito para os peixes-banana”, um primor de conto, com aquela idade.
Salinger não deixou de escrever um só dia. Só que desde 1965 não quis publicar nada. Se isolou do mundo e viveu até o fim numa casa isolada no meio do mato. Ele disse a uma repórter: "Há uma paz maravilhosa em não publicar, a publicação é uma invasão da minha privacidade". Escrever nem sempre é publicar.
Mas eu gosto de publicação. Eu publico neste substack. A internet é uma bênção. Eu adoraria ter um livro inédito de Salinger nas mãos. E o Salinger jovem gostava de publicar. Tinha verdadeira obsessão por ver um conto seu publicado na New Yorker. Salinger era um sujeito estranho. Mas escrevia pra caralho. O mais importante é escrever. Mas publicar também pode ser legal. Você pode escolher o caminho do anonimato, mas não há como negar que as plataformas de escrita se transformaram hoje na casa das nossas experiências e obsessões enquanto escritores.
Dane-se o estilo. Mas que elegância tem a escrita da Natalia Ginzburg! Quem não gostaria de ter aquela delicadeza e força moral de “Inverno em Abruzzo”? O estilo mais belo é o que se esconde. Você passa pelo livro e só depois percebe o que lhe fascinou. Graciliano é assim. Eu aprecio os grandes inovadores, mas o estilo que nos esbofeteia o rosto o tempo todo me cansa. Não vou citar nomes. Natalia Ginzburg, por sua vez, conduz o leitor discretamente pela mão, convida-os a conviver com aquelas famílias, suas manias, seus desgostos e alegrias cotidianas; nos convida a passar um tempo naquele mundo particular e então se despede de nós. Aí é que percebemos o léxico ginzburguiano: estilo.
Gosto de pensar na trajetória aventurosa que alguns livros percorrem até chegar à nossa estante. Tenho ao meu lado um exemplar de A Madona de Cedro, de Antônio Callado que foi doado a uma biblioteca pública em 2007. É uma edição de 1994, comprada em uma loja de Nova Friburgo que nem existe mais. Essa edição ficou na biblioteca de 2007 até 2023. Depois de uma inundação, veio parar aqui em casa. Salvei-a do lixo. Meu amigo Fabrício Tavares de Moraes escreveu em algum lugar sobre esse romance de Callado há uns três anos. Fiquei muito interessado, mas estava muito ocupado com outras leituras e trabalhos. Agora, em 2024, outro amigo, o contista Mariel Reis colocou, numa listinha, A Madona de Cedro entre os maiores romances da nossa literatura. Não resisti, estou lendo. Callado é outro mestre do estilo. Transpõe para a página com habilidade sem-igual uma percepção sumariamente aguda da condição humana. Seu registro da alma de padre Estêvão tomada pela acídia é um troço que não vou esquecer tão cedo. O estilo também é uma coisa assim, que tem uma trajetória.
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Comecei a escrever esse texto no dia em que fez um ano da partida de Burt Bacharach e o terminei no dia da morte de Damo Suzuki.