Eu devia ser mais punk. No sentido de do it yourself. Os artistas mais punk que conheço são Patti Smith e Damo Suzuki, falecido há duas semanas. Sobre Patti Smith já escrevi por aqui em diversas ocasiões. Quanto ao japonês vocalista do CAN, acho que André Barcinski acertou na mosca:
“Artistas importantes morrem toda hora. Mas Damo Suzuki não era só um artista. Era uma ave rara que contaminou muita gente com um senso de independência e de "faça você mesmo".
Suzuki migrou em 1968 do Japão para poder viver como artista na Europa, e depois de perambular por alguns países, se estabeleceu na Alemanha como ator e artista de rua. É uma das lendas mais clássicas do rock a história de sua entrada para o CAN, depois da saída do vocalista original. Os membros da banda assistiram à uma apresentação na qual Damo interpretava um papel do musical Hair na rua. Souberam na hora que era o cara de que precisavam e o convidaram para improvisar em um show no lugar do cantor que havia ido embora. Química instantânea. A carreira com o Can foi meteórica. Quatro álbuns gravados, três clássicos absolutos. Suzuki, deixa a banda em 1973 e se converte às Testemunhas de Jeová, só retornando à música nos anos 80, quando começa a aplicar sua ideia de que “música é comunicação”. Espírito livre e inquieto, o japonês começa uma espécie de “neverending tour” ao redor do mundo, levando sua música intuitiva através de jams com músicos locais ou com os “portadores de sons” que eventualmente se aproximavam ao longo de sua trajetória. Suzuki parou de gravar e se recusou a considerar a música como um produto. Colocou-se à margem da indústria, mas continuou seguindo o caminho que percebia ser o seu: o de oferecer sua arte, performances e palestras, como forma de expressão daquilo que trazia em si. A música era para ele a marca do seu ser no mundo, aquilo que podia oferecer de melhor às pessoas e que deveria causar um impacto de singularidade e criatividade no mundo. A música não é um produto a ser comercializado, mas uma comunicação a ser feita. E foi assim, até o fim, produzindo a sua arte de modo independente, sem aderir ao mundo da indústria musical, que poderia macular a sacralidade do seu propósito. Suzuki não se submeteu às pressões exteriores e às exigências de um mecanismo que impõe modelos e padrões. Permitia eventualmente que gravassem suas performances que eram transformadas em discos. Foi um artista absolutamente independente. O do it yourself foi uma forma indispensável de viver. No entanto, não se isolou outras pessoas e dos artistas que quiserem colaborar com ele, sabia que sua arte dependia da parceria com uma “rede” (Damo Suzuki’s network) de músicos espalhados pelo mundo. Um criador de comunidades. Por isso sua morte causou tanta comoção nas redes sociais. Um homem gentil, de sorriso discreto, e uma alma generosa. Um punk de verdade , no significado mais belo e profundo do termo.
Barcinski arremata seu comentário com presteza:
“Mais que ouvir CAN em tributo a Damo, é hora de fazer coisas extraordinárias.”
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Outro artista do it yourself: Paulo de Tarso.
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Desenterrar um tesouro
A música enquanto performance é algo eminentemente coletivo. Enquanto gravação, não necessariamente. Ouvi Rogério Skylab (em um short, que é o máximo que aguento) dizer que odeia Lobão e Ed Motta — “egos inflados” — que se gabam de executar tudo em seus discos (outros que apreciam a prática: Stevie Wonder, Prince e Paul McCartney, este, inclusive, em algumas gravações dos Beatles ). Os gênios do estúdio, obcecados pela perfeição estética e sonora gostam de dividir o mínimo possível os papéis na gravação de um disco. Ed Motta costuma dizer que acha o máximo ler na capa dos discos do Led Zeppelin: produced by Jimmy Page. O cara fundou a banda, compôs as canções, fez a maioria dos arranjos, é um gênio da guitarra (e do violão; Page é Bert Jansch e Jimi Hendrix ao mesmo tempo) e ainda produz os discos. John Bonhan é um puta baterista, mas quando você ouve aquele som de bateria e identifica ali o Led Zeppelin, isso tem muito a ver com a produção de Jimmy Page.
Nem Stevie Wonder, nem Lobão; Ed Motta, Paul McCartney ou Prince; muito menos Jimmy Page eram exatamente punks. Mas todos eles adotaram de alguma forma o faça você mesmo como meio de vida. Porque sabiam que aquilo que traziam dentro de si não podia ficar esperando a boa-vontade alheia para poder tornar-se presente no mundo; aquilo que provocava neles a necessidade de se expressar não podia ser submetido ao bel prazer alheio, nem ser instrumentalizado por interesses externos. Até havia pessoas que lhes poderiam servir de auxílio e colaborar nessa tarefa essencial, mas eles sabiam, mais do que qualquer pessoa que só a eles mesmos cabia a tarefa de desenterrar aquele tesouro escondido.
É claro que vai ter gente virando os olhinhos e chamando isso de mentira romântica. Mas eu ainda prefiro chamar de vocação.
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A mente portentosa de Brian Wilson está indo descansar. Criou até o fim, até onde pôde.
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The Red Hand Files, Edição #274 / Fevereiro 2024
Minhas musas me abandonaram e, como cineasta e músico, perdi toda motivação e não consigo mais criar. Você já se sentiu estranho consigo mesmo e com sua identidade como artista?
Tam, Cape Town, África do Sul
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Toda vez que entro no meu estúdio, cheio de ânimo e boas intenções, logo me vejo dominado por uma paralisia patética e uma frouxidão sem limites. Vá em frente, pinte! Não rola. Droga. Por quê não? Não consigo mais concentrar minha mente neste espaço; eu, que pensei que dedicaria a vida inteira à minha arte. Não sei como reconectar-me ou reconciliar-me com a arte em um mundo feito de guerra e crueldade. Em que pintar um maldito quadro ajudaria? Como você consegue ser criativo nessas circunstâncias?
Dan, Sidney, Austrália
Caros Tam e Dan,
O que torna nosso trabalho tão excepcional a ponto de exigir inspiração ou uma musa para realizá-lo? Somos artistas e estamos a serviço dos outros. Não é algo que façamos apenas se ou quando nos sentimos motivados — criamos porque é nossa responsabilidade fazê-lo. Na verdade, nosso trabalho não difere muito da ocupação da maioria das pessoas nesse aspecto. Um adulto comum vai ao trabalho apenas se estiver com vontade? E os médicos? E quanto aos trabalhadores? E aos professores? Ou aos motoristas de táxi? Temos o dever de executar nosso trabalho como todos os outros, porque o espaço que ocupamos depende da nossa participação e pose se dissipar se não o fizermos. Um artista comprometido não pode se dar ao luxo de esperar com uma revelação. A inspiração é o luxo indulgente do amador. Musas, Tam, são para perdedores!
A ideia de que você não esteja conseguindo pintar porque o mundo é “feito de guerra e crueldade” é a desculpa mais patética e fraca para não trabalhar que já ouvi, Dan. Como é que pintar um maldito quadro ajudaria? Vai ajudar porque a arte é a resposta mais nobre e necessária aos pecados do mundo. Quando o mundo corre em nossa direção com todas as suas feridas transbordantes — desejoso e necessitado — cobrimos os olhos e recuamos, sentamos e retorcemos as mãos desesperadamente, fugimos e nos escondemos, ou avançamos em sua direção, como nos lançamos em direção a uma criança ferida, com os nossos braços estendidos?
Se queremos nos chamar de artistas, devemos evitar as inúmeras desculpas que se apresentam e fazer bem feita nossa tarefa. Sim, o mundo está doente, e, embora possa parecer cruel, estaríamos em uma condição ainda mais enferma e cruel se não fosse pelos pintores, cineastas e compositores — esses criadores de beleza —que atravessam o sangue e a lama das circunstâncias, e, estendendo suas mãos para o alto, trazendo os próprios céus à terra.
Estes são tempos perigosos e urgentes. Esta não é a hora de ficar sentado lamentando pela condição do mundo — deixe isso para os habitantes pretensiosos desse espaço mórbido e neurótico, as redes sociais - e nem é o momento de esperar inutilmente que a inspiração nos encontre. É hora de trabalhar, de estender as mãos e arrancar a ideia divina de seu berço celestial e oferecê-la ao mundo. Crie, Tam! Crie, Dan! Criem como se sua vida dependesse disso, porque, é claro, é claro, depende de fato!
Com amor, Nick
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Não se mate
Não se mate, por favor, não se mate. Não tenho muito a fazer para convencê-la: não tenho muito a oferecer. Lhe ofereço esse retrato de Rimbaud, que minha filha pintou quando tinha 10 anos. Achei que ela seria uma artista. Mas depois disso ela abandonou sua arte. Parece ter deixado tudo o que sabia nesse retrato e exauriu seu talento artístico. Ela capturou muito bem o espírito do poeta. Um Rimbaud tristonho e entediado que já havia completado a sua obra. Não havia mais o que fazer ? Vamos traficar armas na Arábia! Com Rimbaud, não é “escrevemos porque não podemos apenas viver”, mas “vivo, porque não me basta escrever”. A mortificação só faz sentido para quem descobriu o verdadeiro prazer de viver. Em certo sentido, perder a vontade de pecar também tira o sentido da penitência. O eros é uma potência que precisa ser direcionada para o amor. Rimbaud sabia disso. Por isso lhe ofereço esse retratinho. Claudel, por sua vez, descobriu isso em Rimbaud. A poesia do gaulês invadiu a nave da catedral de Notre Dame de Paris junto com o coro litúrgico. Claudel pensou em se tornar beneditino mas sabia que a poesia era seu destino. Raíssa Maritain, que havia feito um pacto de suicídio com seu marido, também achou essa pulsação nas páginas de A mulher pobre, de Bloy. Portanto, não se mate. Essa noite não.
Não tenho muito a oferecer, mas lhe ofereço a lembrança do meu primeiro dia de aula. Foi um rito de passagem. Eu ia sair das mãos da minha mãe e ser entregue às professoras, que eram lindas criaturas, doces e maravilhosas. Tia Léa, tia Sadinha, tia Marusca, dona Cibinha. Todas santas e matronas. Mas me eram estranhas naquele primeiro dia, e ainda me privaram da companhia do meu primo mais velho, Marcinho, minha última tábua de salvação, que ficou numa turma diferente da minha. Fiquei desamparado, chorando, sem consolo, numa solidão que me parecia cósmica… Mas não podia voltar para casa. Eram os primeiros pesos do mundo que meus ombros tinham que suportar. Pesos imaginários, afinal de contas, eu estava sendo entregue aos corações mais amorosos do mundo. No entanto, para a minha alma infantil, pesos bem reais. Aquele dia passou por cima de mim como um trator, a ponto de eu até hoje me lembrar, senão das imagens exatas — se bem que eu me lembre de alguém comigo numa janela, eu em lágrimas, olhando para as outras crianças tranquilas, já brincando com as professoras — ao menos da sensação infinita do terror de ser abandonado. E, no entanto, eu não estava sendo abandonado. A verdade é que minha mãe só estava me empurrando para fora do ninho. Portanto, não se mate. Vai ver que essa sensação de abandono é apenas uma ilusão. Vai ver que essa vertigem é a sensação de ter que aprender a voar sem a segurança do conhecimento completo. Não existe conhecimento completo. A experiência é o que fica em nós ao passar por esses momentos de desespero e de aparente abandono.
Não se mate, por favor, não se mate. O que eu poderia lhe oferecer a não ser a voz de Morrissey cantando Asleep sobre o piano atmosférico de Johnny Marr? Não acho que Morrissey cantando aqueles versos dramáticos seja apenas um romântico-trágico fingindo que ia se matar. Eu acho que de fato ele sentia que aquilo era possível. Embora para ele bastasse sentir e cantar. Sentir e cantar fez com que ele não precisasse chegar às vias de fato. Nesse caso, a arte salva. Isso parece clichê e óbvio. Mas é verdade. Essa parece ser uma das funções da arte. Oferecer um campo de expressão para que os artistas e o público não precisem chegar às vias de fato. Ouça Asleep, ouça a voz de Morrissey. Sinta e cante. E, por favor, não se mate.
Sing me to sleep
Sing me to sleep
I'm tired and I
I want to go to bed
Sing me to sleep
Sing me to sleep
And then leave me alone
Don't try to wake me in the morning
'Cause I will be gone
Don't feel bad for me
I want you to know
Deep in the cell of my heart
I will feel so glad to go
Sing me to sleep
Sing me to sleep
I don't want to wake up on my own anymore
Sing to me
Sing to me
I don't want to wake up on my own anymore
Don't feel bad for me
I want you to know
Deep in the cell of my heart
I really want to go
There is another world
There is a better world
Well, there must be
Well, there must be
Well, there must be
Well, there must be
Bye
Bye
Bye
Bye, hmm
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Portanto, não se mate.