1.
A música pode salvar minha mente dilacerada pelo TDAH da ruína completa. Passei os dois últimos meses mergulhado em trabalhos que exigiram da minha atenção mais do que eu poderia dar. Se ficava muito desconcentrado, colocava para tocar no YouTube “Loops of Eternity”, do DJ Metraton, ou qualquer outras coisa que eu já tivesse na memória, tipo a discografia do Fountaines DC, para acalmar o movimento das ideias. Talvez fosse isso o que os anacoretas do deserto fizessem com a oração de Jesus. Ou os hindus e budistas com os mantras. A estratégia que desenvolvi para lidar com minha dispersão foi a música. A gente tem que fazer certas coisas aparentemente estúpidas de vez em quando. Naamã mergulhou sete vezes num rio. E talvez isso seja menos estúpido do que acreditar em auto-controle.
2.
Já faz alguns meses que parei de caminhar e correr. Há algumas semanas que nem passeio de bicicleta. Observo os fins de tarde e fico imaginando como o sol deve estar batendo naquelas árvores e mudando a coloração das folhas para tantos tons de verde enquanto o corregozinho desce manso, refrescando as margens e enchendo de limo aquelas pedras centenárias que ninguém vê. Às vezes, tenho o privilégio aparentemente inútil de parar minha bicicleta e permanecer ali, contemplando as árvores, os pássaros, o rio e as pedras. Por vezes, tiro fotos que não conseguem capturar a magia sutil do momento. Em outras ocasiões, simplesmente observo, permitindo que tudo exista, alheio à minha presença. Outras vezes, ainda, sinto-me integrado à cena, como uma semente plantada no solo deste planeta ou uma gota levada pelas águas serenas do riacho. Às vezes, pondero sobre a vida no minúsculo ecossistema que se forma nos pequenos aglomerados de água às margens daquele riacho que margeia o horto estadual. Girinos, barrigudinhos, limo, besouros-d’água, cebinhos saciando a sede — o universo inteiro parece estar contido aqui. Penso em McLuhan, agir localmente, contemplar mais que localmente. Penso em Blake, ver o universo num grão de areia, o paraíso numa flor; segurar o infinito na palma de sua mão e a eternidade em uma hora. O universo, o paraíso, o infinito e a eternidade numa poça d’água. Exagero meu. Mas é preciso treinar.
3.
Ainda acredito em pessoas que fazem as coisas por vocação autêntica, sem pensar em dinheiro em primeiro lugar. Sujeitos que não tentam instrumentalizar (sei, essa palavra está ficando chata) o conhecimento para buscar grana e fama. Que se lançam sobre a vida com uma consciência muito clara do que devem fazer. Que só querem estudar, escrever, ensinar, produzir, criar. Pessoas que acreditam nas coisas feitas com artesanato, por sacerdócio. Viver não é apenas visar a sobrevivência. Makoto Fujimora escreveu uma frase que não para de reverberar: “O amor se moverá para além do mecanismo de sobrevivência”.
4.
Gosto de coisas repetitivas. Acredito na liturgia das coisas. Em ritmo, repetição, rotina, monotonia (nunca tédio). "O caminho da sabedoria é a repetição correta da verdade", ensina um personagem de Murakami. É fazendo todos os dias a mesma coisa que o olhar se aprofunda. Ver muitas coisas o tempo todo é ficar preso no loop da superficialidade. Eu não entendo as pessoas que não entendem a missa porque é repetitiva, é sempre a mesma coisa. É justamente por isso que a missa é boa. Só uma coisa é necessária. É contemplando a mesma árvore todos os dias que você percebe que ela é uma árvore. E o que é uma árvore. E o que uma árvore tem a lhe dizer sobre os terrores e as maravilhas do mundo. Uma árvore é um stupor mundi.
5.
"A maioria dos trabalhos importantes passa despercebida pelas pessoas." (Sōta, personagem do filme "Suzume", de Makoto Shinkai)
A vocação é um dos temas que me fascinam profundamente. Após assistir a "O Jardim das Palavras", do meu mais recente objeto de devoção cinematográfica, Makoto Shinkai, fiquei estupefato com uma youtuber que não conseguiu perceber que a vocação de sapateiro (fabricante de sapatos artesanais) do protagonista, o jovem Takao, é uma síntese simbólica da vocação artística. Ela apenas enxergou a profissão de sapateiro como algo que "requer muito investimento e não oferece retorno garantido".
Além disso, esse filme é uma autêntica obra de arte, uma jornada contemplativa. Poderia chamá-lo de uma aula, mas seria mais justo descrevê-lo como uma imersão na essência da vocação artística. É como se fosse um sonho materializado ou uma realidade que se desvanece em sonho.
A vocação é um dos temas recorrentes nas obras de Makoto Shinkai. Além disso, a vocação artística é o cerne do deslumbrante livro "Arte e Fé", de outro Makoto, o Fujimura. Também é um dos temas centrais de "Fé, Esperança e Carnificina", de Nick Cave, de "O Ato Criativo", de Rick Rubin, e do maravilhoso e breve "Devoção", de Patti Smith.
6.
Quase terminando o banho do meu mais novo, de três para quatro anos, cantava “Travessia”, enquanto enxaguava seus cabelos. “Sonho feito de brisa, vento vem terminar vou, fechar o meu pranto, vou querer…”. Claro que não quis cantar “vou querer me matar” diante do menino. Acho que até Milton tem dificuldade com esse verso. Então eu joguei a bola para o menino: “Vou querer me… me…”, que completou: “me aceitar!”
7.
E no entanto o processo de aceitação envolve pensar o que se pensa e sentir o que se sente. Sem essa aceitação —“sinto vontade de me matar”, por exemplo — nem se começa o processo da cura. Ter a coragem de admitir que sente e pensa as coisas mais humanamente terríveis me parece um dos primeiros passos essenciais — parece, porque nunca estudei psicologia a fundo. Sou um leitor curioso.
Ao que me parece, um segundo passo também é necessário, depois da aceitação. Seymour Glass falou acerca desse segundo passo em um post no Instagram: não se agarrar ao sofrimento.
Aceitar não é estacionar nem estagnar. É um primeiro passo para seguir em frente. Sofro, mas esse não é o meu sofrimento. Não é a minha depressão, nem a minha ansiedade. É a condição humana, meu filho!
“Em meio à depressão ou à ansiedade, qualquer passo afirmativo é melhor do que a paralisia”. (David Von Drehle)
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Belíssimo. Muito obrigada por esse texto!
Sérgio, o único problema neste texto é que acaba :(