Na minha última entrada escrevi sobre meu herói-poeta Poniboy Curtis. Dois dias depois, vi que The Outsiders, o filme (em português Vidas sem Rumo), está no Prime Vídeo e me pus a assisti-lo, como sempre, em pílulas. Deve ter uns bons dez anos - ou mais - desde a última vez. Quanto ao romance de Susan E. Hinton, apesar de não ser constar em nenhum cânone, é um pequeno clássico da minha coleção particular. É um livro que marcou profundamente o fim da minha infância. Pra variar, emprestei-o e nunca me devolveram.
Acho que você deveria ler o livro e assistir ao filme o quanto antes.
E impressionante que, com a maturidade, a gente pode se concentrar nos detalhes e também ir percebendo com mais consciência o simbolismo presente no filme. Quando Poniboy e Johnny vão para o seu retiro forçado, eles se abrigam numa igreja. Johnny vai às compras e traz os itens básicos para a sobrevivência humana: comida, cigarro, livro e baralho. Nesse retiro, que faz o tempo parar para os dois adolescentes e lhes dá a oportunidade de experimentar um pouco mais sua própria humanidade, longe da confusão da violência das gangues e dos conflitos familiares, há os ingredientes que um homem precisa para se tornar o que é: religião, literatura, jogo e prazer lícito. A vida daqueles meninos era muito dura e aqueles poucos dias - apesar das circunstâncias (estão escondidos porque se envolveram num homicídios) - foram uma espécie de refrigério espiritual, que se tornaria um ponto de virada para eles. Um rito de passagem.
Durante aqueles dias, acontece a cena mais bonita do filme, que é descrita assim no livro:
Naquela hora o dia estava clareando. Toda a parte de baixo do vale estava coberta de névoa, às vezes um pedacinho da névoa se soltava e ia voando embora, como nuvenzinhas. O céu estava mais claro do lado leste, o horizonte era uma linha dourada bem fina. As nuvens passaram de cinzentas a cor-de-rosa; o nevoeiro tinha um toque dourado. Houve um momento de silêncio, como se todas as coisas prendessem a respiração, depois o sol apareceu. Era lindo.
— Putz! — a voz de Johnny por trás de mim me fez dar um pulo. — Isso foi demais!
— É. — Suspirei, desejando ter umas tintas para fazer um quadro enquanto aquele lance não sumia da minha cabeça.
— O mais incrível foi o nevoeiro — disse Johnny. — Todo dourado e prateado.
— Hummm — eu disse, tentando fazer um anel de fumaça.
— Pena que não fique assim o tempo todo.
— Nada que é dourado fica. — Eu estava me lembrando de um poema que tinha lido uma vez.
— Quê?
— “O primeiro verde da natureza é dourado,
Para ela, o tom mais difícil de fixar.
Sua primeira folha é uma flor,
Mas só durante uma hora.
Depois folha se rende a folha.
Assim o Paraíso afundou na dor,
Assim a aurora se transforma em dia.
Nada que é dourado fica.”
Johnny ficou me olhando:
— Onde é que você aprendeu isso? Era isso que eu estava querendo dizer.
— Quem escreveu foi Robert Frost. Mas ele queria dizer muito mais do que eu consigo pegar. — Estava tentando pegar o sentido que o poeta tinha na cabeça, mas não conseguia. — Sempre me lembro desse poema, porque nunca consegui entender muito bem o que queria dizer.
— Sabe — disse Johnny devagar —, eu nunca notava nada em cores e nuvens e esse tipo de lance, até que você começou a me chamar a atenção para isso. Até parece que antes não existiam
Esse trecho, e a cena que o ilustra, na opinião deste péssimo cinéfilo, é uma das mais belas da história do cinema, e dá conta do processo que os dois garotos viveram refugiados naquela igreja perdida no meio no mato.
Aliás, o cenário paradisíaco, longe dos centro urbanos e próximo da natureza, é quase o cumprimento de um desejo de Johnny e Poniboy durante um diálogo anterior:
— Deve haver algum lugar sem greasers nem socs, só com gente. Gente comum.
— Fora das cidades grandes — eu disse, deitando de novo. — No campo... No campo... Eu amava o campo. Queria estar longe das cidades, da agitação. A única coisa que queria era ficar largado no chão debaixo de uma árvore e ler um livro ou desenhar, sem ter que esquentar com ataques ou andar com navalha, ou acabar me casando com alguma mina sem nada na cabeça, inteiramente tapada. No campo seria assim, pensei, sonhador.
Assim ficava difícil não me identificar: religião, literatura e roça.
Após uma breve saída do refúgio para comer alguma coisa, levados por seu amigo mais velho, o durão Dallas, acabam se deparando com um incêndio ao retornarem à igreja. Pior: havia uma excursão escolar no local e algumas crianças ficaram presas na igreja em chamas. Os três garotos acabam se envolvendo no resgate das crianças, mas durante operação Johnny é atingido por um pedaço de madeira e se fere gravemente. As crianças estão salvas, e Johnny vai para o hospital, passar por sua via-sacra.
Johnny não é poeta, é um herói trágico, desprezado pelos pais (“gosto quando meu pai me bate, porque assim ele lembra que eu existo”), perdido, que, buscando pertencimento nas gangues, acaba assassinando um soc para salvar a vida de Poniboy. Depois, passa pelo retiro e retorna para dar a vida pelas crianças.
Já temos aqui uma jornada e tanto. Talvez eu volte para falar mais sobre o filme e o livro. Mas não prometo.
Assisti esse filme anteontem no MUBI, e já virou um dos meus favoritos. Sério, de todas as dezenas de filmes que eu assisti nessa plataforma... Esse foi o que mais me fez sentir, mas não sei dizer exatamente por quê. Talvez tenha sido a pureza translúcida – e nada ingênua – de Johnny e Poniboy que não se corrompera, apesar das circunstâncias hostis. Mesmo vivendo submersos na grosseria e na rivalidade, eles não se tornaram ressentidos como o Dallas.
Você já assistiu Apocalypse Now, também do Coppola?
Não deixe de ser dourado. ;)