É domingo. Pulo cedo da cama, escovo os dentes, faço minhas breves orações, passo o café, compro o pão, apronto meus filhos, dou as mãos à minha mulher e vou à missa. Escuto o padre com a mesma atenção serena de todo domingo. Depois, a costumeira conversa na praça, a ida ao mercado para comprar uma sobremesa, talvez uma cerveja para degustar com algum tira-gosto antes do almoço. Almoçamos juntos, e eu, meio alegre depois de algumas cervejas, faço todo mundo rir um pouco com meu senso de humor meio tosco.
Colocamos o menino mais novo para dormir e também fazemos nossa sesta, talvez ouvindo um jazz baixinho, ou alguma coisa do Joe Hisaishi, o maravilhoso compositor das trilhas sonoras do Studio Ghibli. Pulo de novo da cama, para ver alguma série, um resto de jogo de futebol ou ler alguma coisa. Então, o menino acorda, e depois de lhe dar um copo de leite e uma banana amassada, pego a bicicleta, o ajeito na cadeirinha e saio por aí, pedalando lentamente pelos mesmos lugares em que caminhei ou pedalei ao longo dos últimos quarenta e tantos anos, porque são os únicos lugares pelos quais um homem do interior pode caminhar e passear e contemplar as árvores e as montanhas. Os mesmos caminhos, ruas e vielas que levam ao mesmo velho colégio, o mesmíssimo colégio, com o horto, a quadra e os mesmos paralelepípedos. No interior é assim: os lugares são os mesmos, a gente vive por aprofundamento.
Por isso há gente que não suporta a monotonia litúrgica da contemplação que a roça proporciona e vai embora. Vai embora para nunca mais. E há gente que vai embora, conquista o mundo e retorna. Sente saudade deste ritmo lento e repetitivo. E ainda há gente que nunca foi. Simplesmente ficou e foi ficando, aprofundado raízes, assimilando paisagens, sorvendo porções de tempo, sob o mesmo sol, tomando a mesma chuva, descansando debaixo das mesmas sombras de árvore. Gente que parece ter a mesma vocação dos vegetais — das palmeiras e dos pinheiros — viver, crescer, frutificar e morrer no mesmo lugar em que foi plantado.
É claro — panta rei — muros são derrubados, prédios erguidos, quintais desmanchados. A casa da infância, a montanha vista da porta da cozinha, o cachorro e o menino sentados na escada observando a vida passar, as minhocas se mexendo, cavando os canteiros, lentas como as lesmas — os besouros, a goiabeira, o sabiá, as galinhas — tudo isso que não existe mais. O tempo passa, devastando tudo. Mas é incrível como tudo também permanece. Por detrás de outros muros, há outros quintais e outras sombras de árvore, outros galinheiros e outros sonhos de menino. E cá, dentro do peito, a memória indevassável.
É nisso tudo que penso enquanto a bicicleta vai subindo e descendo ladeiras, parando nas pontes para observar os riachos cujas águas correm mansas, ou desacelerando para contemplar as casas mais pobrezinhas nas curvas das estradas, onde se imagina, há uma velhinha feliz cuidando de sua horta, porque à tardinha, quando o sol se vai, é a hora em que as plantas aceitam melhor a molhação. Já nem sei se sou eu que pedalo ou a bicicleta é que vai sozinha, conduzindo meus sonhos e memórias.
Há dias em que coloco meus fones de ouvido e deixo as vozes e instrumentos me guiarem para a Alemanha de Bach, a Estônia de Arvo Pärt ou a Inglaterra de Thomas Tallis. Num podcast alguém fala de Thomas Mann, Dostoievski ou Heidegger. Há domingos em que quero calar minhas próprias vozes e me deixar guiar por outras.
Ah, mas, lembre-se, hoje é dia de eleição, há gente descendo as ladeiras para ir votar. O colégio — o mesmo colégio no qual passei as horas douradas da infância — é usado como seção eleitoral, não há o silêncio de sempre. Uma ansiedade se espalha pelo ar, olhares afoitos são lançados nas praças, a cidade partida sai às ruas, logo começa a apuração… Mas eu quero exercer o direito de continuar o meu passeio: eu não trouxe a carteira, estou sem lenço, sem documento e pedalando contra o vento. Não dá mais tempo de voltar em casa, pegar meus documentos e jogar minha sorte nas mãos dos engravatados.
Então, aponto meu nariz para o futuro, dou um suspiro e volto a pedalar, voando para um destino mais certo do que aquele que as urnas prometem me dar.
"Viver por aprofundamento" - que maravilha! Muito obrigado, Sérgio.