Os incontáveis ramos da árvore genealógica
Uma resenha escrita há cinco anos, minha homenagem ao grande Bill Fay (9 de setembro de 1943 – 22 de fevereiro de 2025)
“Detesta as pessoas que não conhece. Não se acha figura difícil, esbarra diariamente consigo em todas as esquinas de Curitiba”. (Dalton Trevisan, sobre sua própria reclusão)
Com a partida de Leonard Cohen, alguém precisava continuar fazendo aqueles álbuns abissais que investigam a natureza humana no que que ela tem de mais profundo: dor, solidão, luto, religiosidade, amor, busca por sentido, esperança. Em 2019, Nick Cave soltou o belíssimo “Ghosteen”, que fez jus à tradição do bardo canadense. Esse ano, o provável candidato a manter tradição coheniana é “Countless Branches”, do veterano Bill Fay.
Aliás, Bill Fay tinha tudo para ser um parceiro de geração de Cohen…
A história de Fay é triste e singular, mas cheia de ternura e beleza. Hoje não há como contá-la sem tocar no nome de Joshua Henry, que, ao escrever recentemente sobre “Countless Branches” para a revista Rolling Stone, fez uma verdadeira revisão de sua vida a partir de sua relação com a música de Fay, que, por sua vez, o levou a uma aproximação com seu próprio pai. Vamos trocá-la em miúdos, pois também queremos falar de “Countless Branches”.

Na casa de Henry, havia um exemplar de Time of the Last Persecution, segundo e último álbum de Bill Fay antes de um longo hiato sem gravações (ele retornaria em 2013 com Life is People). Henry cresceu ouvindo o disco que seu pai, embora não fosse um grande apreciador de música popular, havia comprado, provavelmente por seu pacifismo (ele serviu no Vietnã), que ressoava nas letras do álbum. Com o tempo, pai e filho passaram a ouvi-lo juntos, tornaram-se fãs e nutriram o sonho de um dia se encontrarem com Bill Fay para convencê-lo a retornar à cena musical pública. Após o falecimento de seu pai, Henry assumiu como missão tornar esse sonho realidade.
Fay foi redescoberto nos anos 2000 pela geração indie rock/alt country, tornando-se um “cantautor” cult. Entre seus fãs, destacam-se Nick Cave, Jim O’Rourke, Jeff Tweedy, Peter Buck, entre outros. Com a reedição de alguns trabalhos, como Still Some Light, que reunia os dois primeiros discos de Fay, o músico conquistou uma pequena popularidade, o que permitiu a Joshua Henry encontrá-lo, compartilhar sua história (com seu pai), emocionar Fay e convencê-lo a gravar novamente. Esta é a pequena história do retorno de Bill Fay e da decisão de gravar Life is People
Após retornar aos estúdios, Fay gravou, depois do álbum de 2012 Who's the Sender, o disco Countless Branches, lançado em janeiro deste ano
Tenho uma espécie de fetiche por artistas reclusos. A aura misteriosa, que talvez alguns deles tenham criado justamente para gerar atração, me fascina. Por que Salinger se tornou um best-seller e resolveu fugir do mundo? Por que Pynchon ainda se recusa a aparecer? Por que Dalton Trevisan se esconde nas sombras do anonimato, como um vampiro? Por que Rubem Fonseca escolheu o afastamento, quando poderia ter se tornado uma celebridade literária? E por que Alice Clark gravou poucos compactos e um único LP, que não fez sucesso algum (esse disco, de 1972, é uma verdadeira pérola, repleta do mais sublime soul-jazz, com toques de northern soul, uma banda extraordinária e a voz incomparável de Alice...), e depois se retirou para viver com a família, sem nunca mais gravar, falecendo em abril de 2004, vítima de um câncer, esquecida pelo público e pela crítica?
Por que Bill Fay não lutou por sua carreira musical, mas escolheu a via humilde e modesta dos empacotadores de peixe e jardineiros (e, mais tarde, a via burocrática da defensoria pública)? Por que decidiu ser um pai de família suburbano e esconder sua música do mundo? Será que seguiu esse caminho porque o público não demonstrava interesse e não estava preparado para sua música? Será que optou por evitar a frustração radical que poderia tê-lo levado, por exemplo, ao mesmo destino de Nick Drake? Será que preferiu não habitar o palácio do comportamento excessivo e transgressor para se dedicar exclusivamente à música, em anonimato? Ou será que Fay apenas quis preservar sua música — tocando e compondo durante quase 40 anos apenas para si mesmo — e viver uma vida simples ao lado da família?
Feita essa digressão, vamos a Countless Branches:
O disco abre com 'In Human Hands', uma canção curta, conduzida pelo piano minimalista de Fay e por sua voz baixa e delicada. Aqui, Fay trai sua conhecida fé na humanidade:
Yeah, everyone knows it
It’s self-evident:
This world ain’t safe
In human hands'
E não deixa de ter razão, quando olhamos para os nossos tempos. Quando o álbum foi composto, ainda não havia pandemia, mas já existia a corrupção da inteligência e da vontade humanas. Fay é particularmente competente em captar os sinais de um possível apocalipse.
How Long, How Long começa com um violão entrelaçado ao piano e uma melodia folk quase pop, daquelas que Cat Stevens faz tão bem. Um cello aparece ao longo da canção, tornando tudo ainda mais bonito. Na letra, um Fay melancólico se pergunta por quanto tempo ainda terá que esperar. Parece estar cansado de tanto ouvir promessas. Enquanto não chega um novo dia, ele ouve vozes ecoando, como fantasmas, através da floresta de árvores genealógicas' (como não recordar o início de Ana Karenina: Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é infeliz à sua maneira)... Esperar por quê? Um verso deixa entrever: Apresse-se, apresse-se, pelo bem da inocência; apresse-se, apresse-se, pelo bem da inocência. Talvez, na faixa-título, ainda por vir, haja um vislumbre de resposta para essa espera.
Your Little Face traz a formação de banda e uma melodia que me lembra muito as canções de The Boatman’s Call, de Nick Cave, com o violino chorando sobre a belíssima melodia. A canção é tão curta que, quando você começa a desfrutar, ela já termina. Na letra, Fay reconhece que o cosmo inteiro não é nada comparado à alma humana, que se reflete nos olhos amorosos da amada:
Nos confins do espaço sideral
Lentamente, mas com segurança, o globo foi feito.
Mas o céu amplo e o mar ondulante
Não é nada comparado aos olhos que vejoNo seu rostinho.
Na belíssima Salt of the Earth, o piano retorna, mas acompanhado por timbres atmosféricos criados por sintetizadores. O sal da terra são as almas escondidas, reconhecidas pelos seus feitos, em cada raça ou credo, para uma criança ou um idoso, mas ocultas à vista de todos. Ser assim é uma honra bem merecida, uma declaração reservada ao sal da terra, que só o Senhor sabe. Mais uma das canções místicas de Fay.
“I will remain here” talvez seja a letra mais bonita do disco. Ela retrata bem o temperamento introspectivo e o estilo recluso de Fay:
I will remain here
Among the hills of my youth
I shall stay here
And search for the hidden truthAmong the hawthorn
And the flowers that unfurl…No, I’ll not be travelin’
To the other side of the worldI watch all the boats sailing out to sea
I say, “What have I got to do with thee?”
I will remain here
And search for the hidden truthIn the bird’s nest
And all kinds of seasBlown by the wind, here
From all manner of countries
Segue uma tradução feita pelo poeta Igor Barbosa:
Eu vou ficar aqui
Entre as colinas que conheci com pouca idade;
Eu devo estar aqui
E procurar a oculta verdade
entre o espinho e as flores que se abrem...
Não, não viajarei
para o outro lado do mundo
Vejo os barcos partindo pro mar
e digo: "que tenho eu a ver com isso?"
Eu aqui devo continuar
e buscar a verdade escondida
No ninho,
mares variados
chegam aqui pelas mãos do vento
vindo de todo tipo de país.
Não nego a identificação. Sou um camponês em seu mundo. Nunca saí da minha cidadezinha natal. Nas poucas vezes em que o fiz, senti logo a nostalgia de um retorno. E no retorno, após a breve ausência, sentia os olhos marejados ao observar as colinas da minha juventude, as flores que se abrem e o ninho do pássaro. Tem um poeminha que diz: Frodo retornou para partir de novo; Toto retornou para recordar Alfredo; O rapaz da motocicleta voltou para morrer. Eu nunca parti. Bill Fay nunca partiu. O que não impediu que sua música chegasse até o fim do mundo, lá no interior do Rio de Janeiro. De aldeia para aldeia, o coração fala ao coração.
Depois desta divagação, voltamos com Filled With Wonder Once Again, uma balada folk que transborda harmonia e serenidade. Bill Fay está com 76 anos, mas sente-se preenchido pelo espanto: Sim, estou maravilhado novamente. Já dizia a canção: Reparou como os velhos / Vão perdendo a esperança / Com seus bichinhos de estimação e plantas? / Já viveram tudo / E sabem que a vida é bela. Mas Bill Fay está dizendo que Agenor pode ter se equivocado: é no entardecer da vida, quando já se viveu tudo e o olhar deixou de procurar, de estação em estação, as cisternas vazias da juventude, e começa calmamente a querer repousar no que é essencial (a natureza, as relações próximas, a arte, a espiritualidade), que voltamos a olhar para o mundo com espanto e admiração. E esta sensação de admiração enche a vida de esperança.
A introdução ao piano de Time’s Going Somewhere é de partir o coração. A voz e o canto de Fay são ainda mais tristes. O piano e essa voz sombria, emoldurada pelas cordas, nos conduzem a uma meditação sobre a passagem do tempo e o sentido da vida. Se na canção anterior Fay serenava, admirado ao olhar para o mundo, aqui ele é puro questionamento diante da constatação de que o tempo passa avassaladoramente e muda tudo: corpo e alma… Para onde vai o tempo? Algum lugar? Lugar nenhum? Há algum propósito em sua passagem? Um plano? Um objetivo?
Eu não sei agora
Mas talvez um dia saberei…
Love will remain traz de volta o tom sereno e esperançoso. É a versão de Fay para o hino ao amor de São Paulo apóstolo: O amor caridade jamais acabará. As profecias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência findará ,mas o amor permanecerá. (I Cor 13,8). Uma balada ao piano e violão com uma bela e breve intervenção de um trumpete.
A maravilhosa canção-título, Countless Branches, retoma o tema de How long, how long com tom lamentoso. O personagem (Fay? O julgar pela capa do disco, sim) está sentada embaixo da árvore genealógica com incontáveis ramos (countless branches) acima de si, numa floresta de inúmeras árvores, pensando sobre a palavra que Abraão ouviu: Em ti e na tua descendência, todas as famílias da terra serão abençoadas.
Debaixo da árvore (um símbolo poderoso, que ilustra a capa do disco), ouvindo ecos de vozes advindas de uma floresta de árvores genealógicas, a personagem lamenta (enquanto o cello assombra):
Quanto tempo até o dia amanher…
Quanto tempo até a promessa se cumprir? A criação aguarda ansiosamente…
One life termina o álbum derramando-se suavemente sobre o verso: Uma vida, está além de qualquer tipo de compreensão… Violão, órgão, o indefectível piano e a aceitação de que uma vida passa rápido demais para que compreendamos o imenso mistério que nos envolve.