Ouvir os que não rezam sozinhos
"Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados" (Vinícius de Moraes, AUSÊNCIA, Rio de Janeiro , 1935)
Não quero ser o grande rio caudaloso
Que figura nos mapas.
Quero ser o cristalino fio d’água
Que canta e murmura na mata silenciosa.
“Música Submersa”, Helena Kolody
Ele está lá e não está, envolto numa nuvem. Parece que para algumas pessoas aquele que afirmo saber da existência com tanta tranquilidade não é Deus. Se para mim ele brilha naturalmente como o sol do meio-dia, para outros ele parece o sol que desapareceu em plena luz do dia. Ele é a paisagem colorida da infância que ficou preta e branca: não há sol, não há a verdura dos morros, o azul do mar, o vermelho das rosas; há no máximo a variação do cinza nas lacunas. Moro numa cidade. Outras pessoas pessoas têm o direito de morar onde quiserem.
Gosto de praia, gosto de sol e de riachos, e observar os detalhes da natureza. Gosto de árvores. Quanto tempo uma formiga leva para percorrer um quilômetro? Gosto de olhar o que não se enxerga direito, gosto da miopia de quem precisa forçar o olhar para ver o que não se exerga a olho nu. Tudo isso me fala de Deus. Tudo isso pode não falar de Deus para outras pessoas.
Ontem à noite, uma amiga da minha filha veio dormir aqui. Às sextas-feiras não comemos carne, mas elas encomendaram esfirras e, obviamente, a abstinência foi quebrada. Minha esposa mandou uma mensagem no grupo da família, Ana, não se preocupe com a carne. A caridade e o acolhimento em receber sua amiga são maiores que isso. Eu, muito mais rígido, se você quiser, reze apenas cinco Pais-Nossos em honra às cinco chagas de Jesus e ofereça pelas almas do purgatório, também é um gesto de caridade; e é muito simples e fácil de fazer. Enfim.
Uma nuvem escura encobriu as poucas estrelas que havia no céu. Nessa época, os discos voadores somem daqui. Somem também os unicórnios, as salamandras e as harpias, os elfos, hamadríades, sereias e os ogros. Os dragões — especialmente os dragões —, também somem. Fiquei pensando: minha filha não vai rezar, ela não têm fé. Ela só reza conosco; ela não reza sozinha. Quem não reza sozinho, não tem fé. Pode isso, a filha de um pai crente, crente demais em tudo, não ter fé?
Ontem o céu estava aqui embaixo, hoje já não sei. E se, para quem não crê, o mundo da fé fosse justamente preto e branco, e libertar-se da crença fosse exatamente a imersão no mundo colorido?
Nunca entendi direito aquele se Deus não existe, tudo é permitido de Ivan Karamazov. Não seria o contrário? Tudo já não é permitido porque Deus existe? O Éden não é quase todo permitido? O mundo dos crentes não se parece com um filme do Studio Ghibli? Ou os filmes do Studio Ghibli não seriam senão um retrato do mundo dos crentes — onde as cores vibram, o universo é uma biosfera prenhe de possibilidades e cada floresta, riacho, casa, sítio, porão ou sótão contém um escossistema de criaturas, relações, meninas e meninos que voam, criaturas míticas, monstros e heróis ? Ou tudo isso é uma ilusão ?
Larguei tudo o que estava fazendo, peguei o ônibus para ir até a rodoviária para de lá pegar uma van e chegar à praia. Fazia frio, quase chovia. O vento queria levar embora minha memória, mas eu insistia em retê-la. Voltei a pensar na minha filha, a pensar nos que não tem fé. Certa vez um sujeito me abordou, no dia do enterro do seu pai: eu queria tanto acreditar na vida eterna! Esse sujeito é ateu? Voltei a pensar nos que não rezam sozinhos. Naqueles que sentiram um movimento espontâneo do espírito quando, em sua descrença, se depararam com a impermanência das coisas. As coisas escorrem: que será de mim ? Que será de tudo o que eu amo? Em que posso apoiar-me?
Mal cheguei à praia e a chuva, fininha, começou. As gaivotas voavam baixo e pousavam nas pedras. Um céu cinzento se mesclava à cor fosca da areia úmida. Era cedo ainda, os bares estavam vazios. Sentei na mesa de um, fiquei observando as formigas. Não sei por que, talvez porque não queria beber , pedi uma água com gás e tudo que estava diante de mim chamava a minha atenção. Nada acontecia, mas o mundo estava à minha frente. Era impossível que minha filha não percebesse. Quanto tempo uma formiga leva para percorrer um quilômetro ? O universo das formigas era outro que o nosso. Lembrei das matinhas que rodeavam a estrada de chão que leva à Fazenda da Batalha, na minha cidade natal, um refúgio para os meninos de pés descalços. Árvores, nuvens, terra, cachorros, flores, correntes d’água. Cada propriedade tinha uma pequena plantação de cana. Cana-de-açúcar tem flor? Quanta coisa!
Fiquei olhando as pessoas que chegavam: homens de terno, meninos com os olhos fixos em suas telas, senhoras, e, mesmo com o tempo ruim, mulheres com seus cachorrinhos, babás com crianças, moças passeando para lá e para cá. Depois liguei meu celular, mandei uma mensagem pra você, é preciso respeitar o tempo de cada um, melhor, é preciso respeitar cada consciência — aí é foda, porque sempre lembro da música de Sting, if you love somebody set them free — mas é para deixar voar mesmo, se ele quiser voar. Ainda que seja preciso, para quem deixa o outro partir, estar sempre vigiando o portão, com o olhar voltado para a estrada: “Estava ainda longe, quando seu pai o viu…” Ou como o cachorro da história que Lygia recordou em A Disciplina do Amor: “Uma tarde (era inverno) ele lá ficou, o focinho voltado para aquela direção.”
Não é uma filha perdida, eu disse. Você entendeu, ela nunca disse que não acreditava, mas eu encasquetei com essa ideia, eu percebi — é uma impressão. Eu quase nunca falho com essas coisas. Certa vez, achei que Natalia Ginzburg, cuja escrita me fascina, não fosse uma boa pensadora, porque naquele ensaio fabuloso que dá nome ao seu livro As Pequenas Virtudes, ela fala de uma liberdade — que, à época, me pareceu excessiva — na educação dos filhos. Mas o coração dos filhos, como o mundo das formigas, é um universo. O coração do outro é um universo.
Subi no primeiro ônibus, aquele amarelo, 147, rasgando o asfalto sem quase me esperar.
Vou voltar para casa por causa dela, sem compromisso, rever minha filha, sei lá por que, uma necessidade que queima por dentro. Vou me sentar na cama, ficar sem fazer nada, só para escutá-la. Vai me achar quadrado? Vai parcecer artificial?
O vento frio que entrava pelas janelas do ônibus me acordou; as janelas salpicadas de minúsculos pingos de chuva. Aquele era o estado da minha alma.
Lá embaixo me atrapalhei um pouco, antes de subir, ensaiei o que dizer. A pele molhada pela chuva fria e cortante. Eu me achava casca grossa, mas agora vejo que ainda preciso que alguém me diga o que fazer. Fazia frio mesmo. Eu não precisava dizer nada, na verdade. Eu só precisava viver. Viver com minha filha, deixando ela ser quem fosse, sendo eu também quem era.
Apertei a campainha. Uma menina bonita atendeu, era minha filha. Ela me beijou como uma estranha. Parecia um primeiro beijo. Eu me senti estranho. Você veio lá de dentro, sorrindo, e nos abraçou. Tinha preparado o jantar para nós!
Num primeiro momento achei que você fosse dizer alguma coisa, e você sempre falou mais que eu; e era mais próxima de Ana do que eu. Mas você não disse nada. Apenas jantamos, como há muito tempo não fazíamos juntos. César juntou-se a nós para comer o carbonara. Ele já está tão crescido! Agora você já tem mais de 40 anos, filhos grandes. Tudo parecia ir bem durante o jantar. Você viu que naquele momento o anjo e o demônio estavam bem equilibrados sobre os meus ombros, deu para ver dentro dos seus olhos.
Vamos fazer uma oração para encerrar a noite, vocês têm aula amanhã, assim você me interrompeu no meio de uma frase. O frio começava a penetrar também o ambiente da cozinha. Rezamos, de olhos fechados. Olhei para Ana. Seus olhos de esquilo, assustados, quase sempre inquietos, estavam apontados para o chão. Ela movia silenciosamente os lábios, mas parecia estar num timing diferente do nosso. Pobre criança, pensei. Mas continuei a olhar. Me lembrei de como ela era linda quando nasceu e de como continuava tão bonita. E de como seu irmão também era lindo. Lembro de tê-los os dois no colo, um dia.
Conte-me a história da sua vida, filha. Diga-me o que te aflije, eu pensei, num tom pomposo, para disfarçar o meu constrangimento.
E, terminada a oração, você brincou, falou sobre o Vasco, que tinha perdido mais um jogo. Chateados, rimos de nós mesmos, como todo vascaíno. E tudo ficou muito mais tranqüilo.
Você é a pessoa mais serena que já encontrei. Em geral estamos todos envergonhados das sementes nocivas que espalhamos. O marido da sua irmã morrendo no hospital outro dia, na fase final do câncer, e você consolando todo mundo. Eu nessa crise, nossa filha… E você tratando tudo com naturalidade.
Você não é o grande rio caudaloso que figura nos mapas. Você é o cristalino fio d’água que canta e murmura na mata silenciosa.
Você ouviu há muito tempo que Deus às vezes se esconde na nuvem do desconhecido. Você já viu e não se assustou tanto quanto eu.
Você entendeu. Dava para ver dentro dos seus olhos. César voltou para o quarto. Você também saiu, abraçando Ana. Eram duas almas que gostavam do frio conversando. Não sei se nossa filha entendeu alguma coisa. Apenas encostou a cabeça no seu ombro e sorriu.
Choveu a noite toda, uma chuva mansa e ininterrupta.
Mas eu não vi nada, já estava dormindo.
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Um texto que é uma atmosfera. Leio com a minha filha dormindo no colo.
Eu queria escrever algum comentário, mas as lágrimas não me permitem.