“Pai, me ensina a andar de bicicleta ?”
No aniversário de William Burroughs (a quem não leio mais)
“Pai, me ensina a andar de bicicleta ?” Ponderei comigo: não se ensina a andar de bicicleta ! É só montar e sair andando! Como eu aprendi a andar de bicicleta? Sei lá, parece que sempre soube. Na minha época de moleque, todo mundo andava de bicicleta! Era 1982! Passava “E.T.” nos cinemas! As bicicletas voavam! Andar de bicicleta era mais ou menos como respirar, comer, chutar bola e soltar pipa. A gente já nascia sabendo.
Depois fiquei pensando… Será? Se ensina ou não se ensina? Minha mulher acha que sim, que eu deveria tentar, fazer qualquer coisa. Já eu comecei a ficar ensimesmado, achando que tinha mais coisa ali atrás daquela pergunta, além de um simples pedido inocente de um menino. Passaram-se os meses… Tentei uma vez, minha bicicleta velha era pedagogicamente ruim, o menino não tinha lá muita habilidade. Veio o Natal, uma bicicleta nova para ele, bonitona, preta e amarela, chegava a brilhar.
Mas os meses continuam a passar, já é fevereiro, a bicicleta parada na garagem, eu sem ensinar o menino, trabalhando feito um doido. E pensando. Pensando sem parar.
Vocês sabem que todo homem é filósofo, não só os motoristas de uber. Depois de tantos meses pensando, o pensamento começou a virar filosofia. Cada um filosofa como pode. Acabei me lembrando de uma música do Supertramp, lá do início da carreira, quando eles nem faziam sucesso ainda, na qual o personagem da canção, que parece um rapaz, questiona sua própria solidão, lamentando que ninguém tem mais tempo para ensinar os meninos pelo que viver:
Não há ninguém com tempo para rir ou chorar
Não há ninguém para nos dizer pelo que estamos vivendo.
Será que “me ensina a andar de bicicleta?” não poderia significar “passa um tempinho comigo?” ou “fica comigo e vai me ensinando a viver?” Será que não era apenas isso o que o menino queria dizer ? Ou será, talvez, exatamente isso ? E se, na verdade, o que o menino estivesse perguntando tivesse mais a ver com vida do que com bicicleta? Para intensificar a tragédia, o protagonista da música chega a uma dolorosa conclusão:
E embora eu tenha tentado ser um homem bom,
Sei que muito em breve irei me perder.
***
Como se ensina a viver? Como se aprende a viver? A resposta é simples: a gente aprende a viver vivendo! No entanto, mesmo que a experiência seja a maior professora, é essencial reconhecer a necessidade de aprender a viver e, por conseguinte, ensinar a viver. Talvez, esse seja um dos princípios fundamentais da sabedoria. A verdadeira sabedoria reside na habilidade de viver bem e na capacidade de transmitir esses ensinamentos. Ser sábio é compreender a arte de viver e ser capaz de compartilhar essa sabedoria com os outros.
Tenho expressado repetidamente no X (ex-Twitter) a ideia de que um dos grandes dramas da nossa geração é a ausência cada vez maior de idosos sábios. Existe um vácuo geracional de sabedoria. Não pretendo parecer nostálgico, mas essa lacuna tem um impacto significativo. Necessitamos de pais, líderes religiosos, avós e educadores que saibam para viver bem e saibam transmitir essa vida boa (o cardeal Angelo Scola tem um belíssimo livro sobre esse tema — “La vita buona”). Pessoas capazes de conviver harmoniosamente e, nesse convívio, compartilhar um modo de viver. Gente disponível para ensinar a andar de bicicleta.
Philip Yancey, jornalista e escritor protestante, narra um episódio interessante:
“Certa vez, quando jantava com um grupo de escritores, a conversa se encaminhou para as cartas que recebíamos de leitores. Richard Foster e Eugene Peterson citaram um jovem ativo que buscara direção espiritual nos dois autores. Responderam educadamente, tanto escrevendo uma carta quanto recomendando livros sobre a espiritualidade. Foster descobriu que o mesmo leitor havia entrado em contato com Henri Nouwen . ‘Você não vai acreditar no que Nouwen fez’, disse ele. ‘Convidou este estranho para viver em sua comunidade por um mês de modo que pudesse ter orientação espiritual diretamente dele.’”
***
Richard Foster e Eugene Peterson são dois notáveis autores cristãos. Nouwen, por sua vez, foi um sacerdote católico, também conhecido como escritor e conferencista. Embora não tenha sido considerado tão brilhante do ponto de vista literário, ele deixou um legado significativo. Nouwen costumava escrever seus livros apressadamente, frequentemente adaptando diários registrados durante retiros ou períodos sabáticos. Apesar de ter planos de publicar ficção, ele não encontrou tempo para concretizar esse desejo, pois estava mais interessado nas pessoas do que na aprimoração de sua escrita. Yancey explica:
“Nós, escritores, temos muito ciúme de nossa agenda e nossa privacidade, e as protegemos. (…) Henri Nouwen quebrou essas barreiras do profissionalismo. Ele mantinha um esquema ativo de correspondência com cerca de 500 pessoas e encorajava muitos deles a lhe fazerem uma visita pessoalmente.”
Nouwen era o que se chamava de um pastor de almas. Ele gostava de ensinar a andar de bicicleta.
Andorinha
Chego ao trabalho. Antes de abrir a porta, sei lá porque cargas d´água, olho para trás e vejo três andorinhas aflitas no meio do asfalto. Sua agitação me chama a atenção. Há uns quinze dias, tentei salvar um filhote que havia caído do ninho durante uma chuva torrencial e quase caí na porta do escritório, a sola do tênis meio desgastada no piso molhado. Agora aquelas três ali. Um carro se aproxima, e duas voam para longe. A terceira, um filhote ainda inexperiente no voo, permanece vulnerável, bem no meio da rua. Sinto o impulso de me lançar no asfalto, parar o trânsito e salvar a bichinha. Sinto e penso. Mas penso demais. Ainda tento correr para salvá-la, mas uma camionete, mais rápida do que eu, a atinge, deixando para trás uma poça de sangue e penas no asfalto quente.
Me aproximo daquela imagem terrível, a rua agora vazia, silenciosa, por mais quantos segundos? Aquele sangue ali, ainda vivo, sobre o asfalto. Viro as costas, miro o céu e caminho em direção ao escritório. Volto mais uma vez meu olhar, buscando a cena. E então, do degrau onde estou, me vejo atravessar a rua em direção à andorinha, e eu me vejo parado no meio da rua, levantando a mão para o motorista da camionete, parando o trânsito, antes que os pneus esmaguem a andorinha. O fato de me ver a mim mesmo, penso, parado no meio da rua, salvando a andorinha, ainda há de persistir por muito tempo, porque é assim, há certas coisas que são inevitáveis, de nada adianta tentar eliminar aquelas imagens da mente; eu com o corpo meio inclinado, correndo em direção à ela, a cabeça com a decisão fixa, de repente eu estava lá, e foi como se sempre tivesse sido assim, eu decidido e agindo, sem ponderar muito, parado no meio da rua, um homem com uma só alma, de mãos firmes, sinalizando para o motorista. Eu me vejo; eu me vejo correndo em direção ao passarinho, sem hesitar, parando o trânsito e colocando a bichinha na palma da mão. Uma hora perdida no tempo. Não há o que fazer, não há jeito de escapar; eu tentei, claro, pensei nisso e naquilo. Do que adianta pensar tanto? Eu não tentei, eu pensei. Eu me vejo ali, parado e pensando, será que não é hora de correr e salvar a andorinha? Será que virá algum carro? Ela conseguirá escapar das rodas? Não é sempre assim? As andorinhas são mortas pelos carros, esmagadas no asfalto e a gente não pode fazer nada, é o ciclo da vida, umas sobrevivem, outras morrem… Mas aquela poça de sangue e penas no asfalto fervente da tarde bota a gente comovido como o diabo. Eu paro no meio do degrau do escritório e penso — eu devia. Não tem jeito: a gente não para de pensar. Eu me vejo correndo para o meio do asfalto, parando o trânsito…
***
Um disco: Wall of Eyes, The Smile
Um filme: O tempo com você, Makoto Shinkai
Um livro: Para liberarte de una espiritualidad sin vida, Víctor Manuel Fernández
Um podcast: Selmocast
Uma entrevista: Mariel, no Repórter Belga
Um guitar hero, uma história: Serginho Serra, no Corredor 5
Outro podcast: Primeiro Parágrafo
***
Um trecho de “A Madona de Cedro”, no qual Antônio Callado talvez descreva a acídia (de Padre Estevão) melhor do que muitos autores espirituais:
“Deus lhe perdoasse, mas via tudo tão vago na frente, tão profundamente maçante e sem importância, tão emerencianamente caducado. Até a ideia da morte já lhe era indiferente, agora que não tinha mais planos. Ele devia, devia ter ido para o interior do país catequizar os índios. Como explicar a si mesmo a teia sutil de circunstâncias válidas e omissões, e principalmente adiamentos, que acabara por imobilizá-lo em Congonhas do Campo à espera de uma morte da qual se desinteressava por completo? Tantas vezes se tinha visto morto de sede, de febre, de flecha à beira de um grande rio, cercado da grande floresta, tantas vezes garantira a si mesmo que ia morrer de facão na cinta e crucifixo na mão, ou num grande naufrágio em rio grosso, ou até amarrado num poste e crivado de flechas, que a ideia de morrer nos lençóis de algodão lavados pela preta Malvina era-lhe menos que repugnante: indiferente. Sempre tinha tido a convicção de que Deus não tolerava indiferença. Pecado era melhor que desinteresse, crime melhor do que tédio. Isso de tanto faz como tanto fez era pecar diretamente contra o Espírito Santo. E ele agora tinha indiferença pela morte, que, afinal de contas, é a coroa que se põe na cabeça da vida, a própria solução de tudo. Grandes iras e torvas desobediências podem levar a gente a se chamuscar no próprio fogaréu do inferno, mas engendramem si mesmas os grandes remorsos que sacodem as criaturas como os vendavais sacodem as árvores na floresta, e há qualquer coisa de grande em precisar um cristão de ser sacudido pela cólera de Deus para não se perder de todo no furioso nada da danação sem remédio. E agora ele estava chegado ao momento em que não tinha mais vontade de pecar. Mal reconhecia a sua carne, que outrora lhe custava tanto dominar e que o forçava a viajar léguas para poder jazer com mulher semque se soubesse, que o levava a varar campos e montes em lombo de burro para no fim do estirão encontrar às vezes, oh, que feias e sornas mulheres que mesmo antes do pecado já se assemelhavam ao negro arrependimento e que post coitum lhe davam um arrepio de horror. Mas como senão assim evitar os terríveis desejos que o assaltavam no confessionário ao ouvir o relato feito por tanta boca ardente que parecia fazer da confissão dos pecados do leito uma espécie de asterisco dos atos relatados. Horrível e triste aquela luta de meio século contra a luxúria. Ele passara mesmo a crer na existência das súcubas e durante anos tinha sido dominado pela mesma súcuba que se vinha espojar em sua rede e que o possuía, a despeito das resistências que mesmo adormecido ele lhe opunha. A súcuba de azeitados cabelos negros grudados à cabeça e imensas argolas de ouro nas orelhas que se lhe colava ao peito e às pernas como túnica de sanguessugas e o deixava exausto, olhos perdidos no fundo das olheiras. Mas agora aqueles fogos estavam rasos e quase extintos, a carne estava bastante aplacada. O que não tinha vindo nos retesados e doloridos músculos da virtude chegava escarranchado no dorso do tempo, o que não jorrara outrora do centro ardente da sua força de vontade arrefecia hoje sua vida com uma lívida fatalidade sazonal de inverno. O incêndio que não tinha sabido extinguir morria agora por não mais encontrar que consumir e lhe dava a convicção melancólica de que seu ardor missionário e seu ardor sexual eram aspectos gêmeos da mesma virilidade que se acabava, fato que d. Emerenciana achava que devia comemorar com um almoço de beatas. Agora era fácil ver que todas as grandes ações eram fagulhas a brotar do atrito do espírito que brada non possumus à carne alegre e cega e agora muitas frases dos Evangelhos, que outrora eram-lhe opacas à vista como pedras na estrada, fulguravam lapidadas como joias pela sabedoria dos anos: apenas agora não havia mais atrito e as gemas ele as via do alto da montanha fria. Virilidade e espiritualidade não passavam de galhos que sugam sustento do mesmo tubérculo a inchar na terra fresca e escura. E era isto que d. Emerenciana queria ratificar com tutu-tropeiro e vinho verde.
***
Uma ave-maria para William Burroughs.