Olho para a hóstia e vejo um girassol de Van Gogh. Olho para uma lua do mesmo mestre holandês e vejo a Virgem. Fecho os olhos para me concentrar e escuto a voz de Joan Baez ou de Stevie Wonder. Mergulho no mar e me sinto a gotinha de água que o padre dissolve no cálice (não conte para eles, mas todo padre é um artista — quem celebra a missa só pode ser um artista). Mesmo que eu não produza arte — não sou poeta, músico, nem pintor — desde muito cedo me percebi habitando o território da imaginação. Isso não tem nada a ver com pose, nem status. Pode parecer um questão de soberba, de sentir-se especial, mas não é. Tem mais a ver com uma constatação. Não é nem que eu queira ser assim. Na verdade, neguei isso por muito tempo. Não nego mais. Embora meus fantasmas sempre me queiram arrastar para onde eu não seja quem eu sou, não pense o que penso, nem sinta o que sinto, não o nego mais. Eu sou assim. Penso como um artista, sinto como um artista. Rezo como um artista.
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E tenho aprendido, que embora não produza arte, posso viver como um artista. Cuidar do outro como um artista, contemplar a cidade andando de bicicleta como um artista, trabalhar como um artista. É o que tenho aprendido com Makoto Fujimura e Rick Rubin, mas sobretudo observando o minucioso trabalho de ensinar filosofia para a vida do meu amigo André Lisboa. Usar o Instagram como um artista, tirar fotos como um artista, dar aulas como um artista. André utiliza as redes sociais com verdadeira sabedoria e sobriedade. Vale a pena conhecer tanto ele quanto o seu trabalho.
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Tem gente que não escreve poesia mas vive mais poeticamente do que o poeta. Nem todo mundo é Adélia. Às vezes o poeta é um sujeito duro, que não chora, um sarcástico que se senta pragmaticamente para escrever e sai um poema de verdade. Um soneto perfeitíssimo e belo, por exemplo. E tem o outro sujeito, como talvez o japonês do filme do Wim Wenders, que não é poeta, mas cuja rotina é um poema diário. Até o modo de dobrar o colchão.
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Cuidar de meus filhos me salva de mim mesmo. Me salva da minha autorreferencialidade. Eu posso perfeitamente confundir vida examinada com ensimesmamento. É o perigo da imaginação do artista tresloucado. Então, ter um menino que me obriga a pular cedo da cama, me pede para preparar o leite, para assistir Patrulha Canina, e que não me deixa nem colocar o lixo para fora, me salva de mim. E parem com essa besteira de falar mal dos deveres de estado. Pode não estar em Girard nem no seu autorzinho right hipster, ou mesmo no left hipster que você quer apresentar à direita cultural, mas está no Gênesis e em São Josemaria. Quem casa tem que cuidar da esposa; quem procria, tem que cuidar dos filhos. Todo mundo tem que trabalhar. Não há estímulo maior à criatividade do que ser responsável pelo Éden.
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Quem canta mais, Damo Suzuki ou Shane McGowan? Deus é quem sabe.
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Você não pode afirmar por si mesmo que o que você faz é arte. São os outros que precisam dizer, observando o que você faz. Porque a arte só existe quando outra pessoa a está contemplando. É uma via de mão dupla. Portanto, apenas o apreciador pode determinar, através de sua contemplação, se o que está diante dele é arte, e não o artista.
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RED HAND FILES NÚMERO 280 / ABRIL DE 2024:
Estou achando difícil lidar com a sua recente inclinação religiosa e seu proselitismo. Como você concilia sua fé com a história devastadora da igreja em relação ao sexismo, homofobia, pedofilia, etc.? Não é suficiente diferenciar Jesus da religião cristã, já que ela se baseia em suas palavras e ensinamentos. Você não sente que está decepcionando (ou até alienando) seus fãs queer e mulheres?
Jemma (Uma fã transgênero) Sydney, Austrália
Querida Jemma,
Ao refletir sobre os artistas que verdadeiramente admiro, cujas obras tenho acompanhado ao longo dos anos, percebo que em algum momento de suas extensas carreiras, todos eles me decepcionaram. Bob Dylan, Neil Young, Nina Simone, Kanye West, Van Morrison, Morrissey, Brian Eno, Leonard Cohen, Patti Smith — esses são os artistas que considero membros de uma espécie de confraria da excelência. Devo dizer, no entanto, que, em algum momento de suas vidas e carreiras, não há um só deles que não me tenha deixado alienado, confuso, ou mesmo tenha me degradado com alguma atitude. Muitas vezes, eles seguiram rumos que eu não esperava nem desejava, optando por trilhar seus próprios caminhos, ainda que erráticos (malditos!), em busca de suas próprias verdades. Nesse processo, ocasionalmente me senti desconfortável com seus atos, discordei de algo que tivessem dito ou simplesmente não gostei de um álbum específico que lançaram. Ainda assim, há algo neles que me mantém cativo, sempre atento ao que podem vir a criar. Mais do que a qualquer outra coisa, é um fascínio relacionado à sua autenticidade. Percebo que, em um nível fundamental, todos estão seguindo seus próprios caminhos e não estão preocupados em moldar suas vidas, artisticamente ou não, para agradar ou satisfazer os outros. São completamente autênticos, independentemente dos meus sentimentos ou dos de qualquer outra pessoa, e isso me reconforta profundamente em um mundo que muitas vezes parece carente de integridade. De fato, quando percebo que um artista está criando, falando ou agindo apenas para obter a aprovação do público ou se curvar às demandas do mercado, percebo que é a hora de me afastar.
Jemma, se algo que eu escrevi parece perturbador ou alienante, saiba que não foi escrito com animosidade ou falta de respeito. Tanto em minhas respostas no Red Hand Files quanto em qualquer outra parte do meu trabalho, procuro permanecer fiel a mim mesmo como uma forma de respeito e para não ceder às expectativas alheias. Esta é a maneira que escolhi para me apresentar a você da forma mais autêntica e verdadeira possível.
Nossas vidas são complexas, e todos nós pensamos e fazemos coisas que muitas vezes são incompreensíveis para os outros. Agimos assim porque vivemos nossas próprias experiências e encontramos nossas próprias verdades em lugares diferentes. Para minha admiração, encontrei algumas dessas verdades na instituição tantas vezes falha, frequentemente decepcionante, profundamente estranha e totalmente humana que é a Igreja. Às vezes, isso é tão desconcertante para mim quanto pode ser para você.
No final das contas, suspeito que seja na música que todos nós nos encontraremos. Unidos pelo som e pelo ritmo, em um lugar especial além do dogma, da opinião e da ofensa, podemos encontrar sentido para o mundo. Espero encontrá-la lá, Jemma, em algum lugar entre as músicas, em Sydney, no próximo mês! Mal posso esperar!
Com amor,
Nick
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Alguém disse que o filme de Wim Wenders é uma louvação à vida analógica. Uma proposta de retorno. Não creio que em pleno 2024 isso seja possível. A Inteligência Artificial é um point of no return em relação ao mercado de trabalho. Não há como renunciar aos dispositivos móveis, aos apps, às redes sociais. O caminho é aquele velho da temperança. O caminho do meio, etc. Eu, por exemplo, me recuso a usar câmeras que registrem tudo ao meu redor. Não quero saber da vida dos outros. Me recuso a usar um relógio que marque meus batimentos cardíacos, meus passos, minhas estatísticas diárias. Não quero máquinas me vigiando. Mas também conseguiria passar meus dias só ouvindo Van Morrison, Velvet Underground e Nina Simone em fitas cassete. Quero o novo da Adrianne Lenker assim que ele sai. Quero o novo do Nick Cave imediatamente. Quero streamings, quero tudo. Mas gostaria de ter minhas cassete antigas, meus vinis, e ter onde ouvi-los (não tenho mais). Amo retirar livros empoeirados de estantes. Amo andar de bicicleta, passear pela natureza. Gosto de rotina.
Nossa geração é uma anfíbia tecnológica. Com a cabeça nas nuvens virtuais, mas com os pés ainda chafurdando no lodo analógico.
Nossos filhos não sentirão mais essa nostalgia do analógico.
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Esta newsletter, por exemplo, é feita do modo mais artesanal possível. Mesmo que eu a revise, como é escrita de modo apaixonado e às vezes é publicada no impulso — tenho que publicar esta aqui hoje —, acaba saindo cheia de imperfeições. Por mais que eu me debruce sobre o texto, os errinhos estão espalhados por aí. E, quando as pessoas compartilham algum trecho nas redes sociais, sempre escolhem um com alguns deles. Embora eu não seja o Marcelo Ferlin, acho bonito poder ler um texto depois de publicado e ainda corrigi-lo, mesmo que as pessoas tenham a possibilidade de sempre acessar o texto original — com os erros — em sua caixa de e-mails. Podem continuar compartilhando meus errinhos.
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Mas nem sempre é assim. Por vezes, seguimos em frente sem refletir, sem experimentar, sem perceber que estamos apenas existindo, como se nossa vida fosse a timeline de uma rede social. É por isso que surgem textos como o que abre esta newsletter. Para relembrar a arte. Para nos reconectar com o fato de que somos observadores do cenário em constante mudança. Servos na paisagem em movimento. Ou, talvez, que somos guardiões da memória.
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Não, ainda não assisti “Dias perfeitos”.
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Falei demais de mim nessa edição. Perdoem a minha insensatez.
Essa newsletter é gratuita e sempre será, mas, se você gosta dela, considere comentar aqui, curtir os posts, compartilhá-la e divulgá-la. É fácil. Ela está cheia de botõezinhos por aí.
Seus textos dão vontade de escrever! Obrigada!
Continue falando de você e compartilhando conosco! É um deleite ler seus escritos, Sérgio. Um abraço! Que nosso Senhor te abençoe.