1.
A primeira cidade era tão minúscula que parecia ser possível atravessá-la em três piscadelas. Só havia uma rua, ladeada de casinhas simples, mas bonitas. Tudo era gracioso e singelo; no entanto, a praça central se destacava, com o coreto de beleza majestosa e as árvores reverenciando a Igreja Matriz imponente do outro lado da rua nunca mais saíram da minha lembrança, embora tenha passado por ela com relativa pressa e sem desacelerar o carro.
Nem toda beleza é feita para ser contemplada profundamente; existem belezas de passagem, como algumas flores que mesmo vistas de soslaio deixam impressão duradoura. Possuem a faculdade de penetrar pela retina em frações de segundo e ali permanecer, quase anônimas. É a beleza que apetece mais à memória que ao momento presente. Apreendida pelo instante, admirada posteriormente pela memória.
2.
As ruas da segunda cidade brilhavam no fim da tarde. O sol banhava os paralelepípedos com sua luz dourada. Também não demorei muito para atravessá-la. As casas passavam pela janela e eu não conseguia fixá-las tamanha a luminosidade refletida nas pedras. Talvez por isso eu não tenha conseguido decifrar bem as entrelinhas daquelas vielas.
Talvez porque eu ande sempre rápido demais.
Compreendo que as pessoas de meia-idade comecem a sentir o tempo correr e queiram avançar mais rápido do que ele. Há coisas que não podemos mudar. Acho que é por isso que tentamos correr juntos. Não queremos ficar para trás. Às vezes eu gostaria que meu pai estivesse aqui. Às vezes me sinto perdido. Meu pai falava pouco, não tinha conselhos para me dar. Mas era uma presença. Você olhava para o sofá e ele estava ali, meio dormindo ou sussurrando uma oração. Ele sabia o que estava fazendo. Ele só queria estar ali. E assim o fazia.
Tento observar a cidade. Passo em frente a um hospital. Pessoas correm, outras estão sentadas, abatidas. Alguém deve ter partido ou recebido uma notícia devastadora. Há uma dinânica diferente: exames, visitas, cartório, sepultamento. A doença e a morte obrigam o tempo a passar mais lentamente. Há uma irrupção da finitude. Enquanto isso, do outro lado da rua, um pouco mais adiante, a cidade continua seu fluxo de agitação, comércio, gargalhadas e lágrimas escondidas embaixo dos óculos escuros, aguardando talvez outro acontecimento fatal.
Hoje você se aflige, consumido por dilemas, perde o sono diante do peso das escolhas; amanhã, sua presença será uma poeirinha flutuando na memória de alguns poucos. Quase ninguém lembrará da sua existência.
Na natureza, o verde é ouro somente por uma hora.
3.
A cidade onde perdi quase todo o meu dinheiro chama-se Terceira. A carteira caiu do bolso da minha calça durante um passeio de moto. Tudo o que me restou foram uns trocados amassados nos bolsos da calça. Enquanto passava pelas plantações, avistei um campo de trigo e um convento. Eu estava faminto, e contemplar os campos dourados me dava mais fome ainda. Conversei com o guardião da porta do convento e ele me explicou que era um mosteiro. Disse-lhe que havia perdido a carteira e estava com fome. Ademais, o tanque da minha moto estava na reserva e eu precisaria de uma lugar para passar a noite. Posso conversar com o abade, me disse, explicando a hierarquia do lugar e se identificando como um irmão. Ofereceu-me alguns pedacinhos de hóstia e um copo de vinho que havia reservado para um monge ancião celebrar a missa, a fim de aplacar um pouco a minha fome enquanto eu esperava. Um outro monge ficou escandalizado com esse gesto. Não se banaliza as coisas sagradas oferecendo-as como alimento aos visitantes. O pouco que comi me saciou.
Passei uma semana hospedado ali sem entrar uma vez na cidade. A alimentação era frugal, a cama pouco confortável e eles quase não dormiam. Mas foram dias de uma intensa paz, que há muito não sentia. Não participei das atividades religiosas, a não ser algumas poucas celebrações, mas sentia a alegria correr pelas minhas veias ao escutar aqueles monges cantarem. Trabalhei um pouco; fiz queijo, vinho e biscoitos.
Depois de uma semana, me dirigi finalmente à cidade e fui à casa da minha irmã. Passei alguns dias em sua companhia. Ela dizia estar passando por dificuldades financeiras, mas havia recebido um adiantamento que daria para se virar por uns seis meses. Fiquei uma semana. Fui à rua, encontrei comerciantes, frequentei os bares e quase não gastei um tostão. No dia em que fui embora, minha irmã me dirigiu a palavra:
— Como é que você pode falar que a providência está agindo se há uma semana não acontece nada?
— É de muitos nadas que nascem os grandes acontecimentos. E é na abundância dos silêncios que crescem os movimentos, retruquei. Há uma semana que comemos, temos abrigo e roupas.
Naquele dia, parti da cidade em que não precisei de dinheiro enquanto lá estive.
4.
A quarta cidade era Vale Claro, onde nasceu Dona Gertrudes.
Dona Gertrudes havia sido minha professora. Me emprestava os livros e ensinava a lê-los. A cada semana eu levava um livro de sua biblioteca e ao devolvê-lo, ela me explicava a narrativa, tirava minhas dúvidas e emprestava outro. Tornou-se uma espécie de mestra de vida.
Tudo naquela cidade era uma homenagem à minha amada professora. Sua memória era venerada. A biblioteca anexa à praça levava seu nome. Na própria praça havia sido inaugurado um busto em sua homenagem.
Depois de passear algumas horas naquelas ruas e recordar do tempo bom que vivi ali, parei defronte ao busto de Dona Gertrudes. Para alguns era uma heroína, para outros uma revolucionária, uma tirana ou uma santa. Para mim, a minha professora. Enquanto observava se o rosto da estátua correspondia às lembranças que tinha de Dona Gertrudes, notei que as abas de suas narinas se moviam, como se respirassem. Seus olhos fixaram-se em mim. Os lábios exibiam um leve tremor. Ela não disse nada, mas me lançou um olhar fulminante, como os que dirigia a mim quando eu aprontava na sala de aula. Suas feições foram se animando e adquirindo formas e cores naturais. Do pescoço surgiu um ombro e logo o tronco, os braços e o corpo inteiro. Dona Gertrudes não era uma mulher alta, mas já parecia ter mais de dois metros. Eu olhava para cima e via aquela gigante crescer. Os seios pareciam duas pequenas montanhas. Sua cabeça já ultrapassava a altura das palmeiras que ornavam a praça. Quando atingiu a altura dos prédios do centro, comecei a sentir medo, apesar de a expressão ameaçadora já ter desaparecido, sendo substituída por uma ternura quase maternal. Daquele tamanho, ela podia ver a cidade inteira, mas não desviava os olhos de mim. Em questão de segundos sua sombra cobriu a Igreja Matriz. Com gestos lentos e desengonçados, estendeu a mão para mim, como se pedisse que eu subisse pelos seus dedos. Assim o fiz, e me pus da palma de suas mãos. Ela me olhava agora com uma feição cheia de afeto, sem dizer uma palavra. Me pôs muito perto do seu rosto e senti o sopro de sua respiração. Ergui-me na ponta dos pés e vi em seu rosto uma mistura de dor e paixão. Depois me aconchegou no colo e senti a quentura de seus seios. Me embalou, como se embala um recém nascido. Adormeci.
Acordei na manhã seguinte, deitado num dos bancos da praça. Minha moto estava estacionada na mesma calçada. Subi e fui embora. Quando alcancei o asfalto e andei alguns quilômetros, tive a exata impressão de que alguém me abraçava na carona da moto. Senti a maciez quente dos seios fartos de Dona Gertrudes. Mas não havia ninguém. A estrada estava vazia. Olhei para trás e Vale Claro era agora uma nuvem de poeira perdida da imensidão do vazio.
5.
Na quinta cidade experimentei por um breve momento o sonho de viver da escrita. Por dois anos trabalhei revisando, traduzindo, editando e escrevendo para pequenos jornais. Castelo de areia que logo desmoronou com o nascimento do meu meu terceiro filho. Ou livros ou filhos. Eu quis desafiar esse adágio, mas fui à lona. Nessa cidade, fiz de tudo — lavei pratos, carreguei e descarreguei caminhões, trabalhei em bares e em balcões de loja. Depois consegui um emprego burocrático que cobria minhas despesas e voltei a escrever por prazer.
Foi ali também que descobri a virtude da preguiça. Aprendi, à beira da praia, após um dia estafante de trabalho, que quem não faz nada é o sujeito mais perigoso. Aquele que reaprender a abraçar o tédio e a contemplar o vai e vem manso das ondas se tornará uma ameaça ao sistema. Naquelas dias aprendi a arte de ficar na rede numa quarta-feira, às cinco da tarde, sem culpa.
Voltei a escrever por hobby, a ser um amador. Mas uma espécie de amador excepcional, que procura atuar no mais alto nível da arte. Às vezes acho que é soberba, às vezes acho que é só vocação. Nem todos devem ganhar a vida com isso. É até prejudicial tentar.
Escrever com o espírito de um jardineiro ou de um marceneiro de fim de semana — buscando a fineza da técnica (que me é tão distante…), mas com lazer e amor.
Foi o que aprendi em São Miguel Arcanjo.
6.
Em outra cidade movimentada, onde o tumulto das ruas se mesclava ao caos interior dos homens, existia um lugar onde se podia ouvir os pássaros cantando. E, se caminhássemos um pouco mais, logo surgia o coaxar dos sapos e, à beira da lagoa, o murmúrio das águas se misturava ao farfalhar das árvores. Havia um mosteiro e uma biblioteca, cuja existência os habitantes da cidade pareciam desconhecer. Sempre que eu passava por esse lugar, encontrava ali algum refúgio.
Lembro-me de quando ouvia Spiegel im Spiegel, de Arvo Pärt, sentado à beira do lago. Mandei uma mensagem a uma amiga perguntando se ela conhecia essa composição. Ela respondeu: É a trilha sonora da minha alma. Uma música silenciosa. Li em algum lugar que a grandiosidade da música está no intervalo mudo entre as notas. Em outro, que a poesia se distingue da letra de música pelo silêncio, enquanto na canção as palavras são preenchidas com sons. Uma alma silenciosa? Não conheço. Uma música silenciosa? Nunca ouvi. Ouvi silêncios, mas nunca o silêncio.
O Verbo é uma palavra dita no silêncio, um discurso que se comunica sem perturbá-lo. Ao criar o mundo, Deus quis que a palavra ganhasse materialidade, permitindo a existência do som. Assim, o homem descobriu a música. Organizada e executada pelos grandes criadores e músicos, ela já existia desde sempre, no silêncio imemorial.
Quando o compositor busca a beleza mais perfeita, está cortejando essa quietude original, onde tudo vibra, mas nada é alterado. A paz é a tranquilidade da ordem.
7.
À sétima cidade cheguei para comemorar o aniversário de Ivan, menino simples, que até gosta de festa e bolo, mas prefere a companhia serena de poucas pessoas que não façam muito barulho.
Almoçamos no restaurante que ele gosta e a dona mandou um doce de parabéns. Ele não gosta que façam festa e cantem, mas aceitou serenamente um Parabéns pra você bem discreto.
Passamos no apartamento da avó de Ivan, mas ela não estava em casa.
Depois, tomamos sorvete na pracinha e ficamos um tempo na igreja para agradecer.
Passeamos um pouquinho pelo jardim que enfeita a praça central.
À noite, jantamos o prato predileto de Ivan.
Esqueci de dizer que antes da janta ainda teve banho de borracha e balde. Da sala, trabalhando em um texto, escutei a algazarra.
Foi um dia simples, mas cheio de amor.
Eu nunca quis ir embora da sétima cidade.
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Excelente como sempre.
Vi na imaginação as casas douradas de sol... Muito bonito.