Quando Paul Simon anunciou que iria se aposentar, foi como se alguém fechasse a torneira de uma caixa d'água ainda cheia. Era 2018, cedo demais. Uma parada improvável. Havia todo um patrimônio de notas, ritmos, vozes não ditas. Ele iria fechar a caixinha e trancar a bailarina para sempre na escuridão do nada?
Bem, de lá para cá houve algumas poucas aparições, apresentações esporádicas e a bela participação no festival de Newport do ano passado. Não é fácil domesticar a pulsão criativa. E mesmo quando você estreita as portas da consciência, o espírito manda recados pelos sonhos.
O último disco de inéditas havia sido Stranger to a Stranger. E eis que, quando ninguém mais esperava, Paul Simon aparece com um trabalho novo, fruto de um sonho que teve em janeiro de 2019, no qual ouvia uma espécie de voz que lhe dizia para que trabalhasse numa peça chamada Seven Psalms. “O sonho foi tão forte que me levantei e escrevi, mas não tinha ideia do significado”.
“Aos poucos, as informações vinham”, ele conta no trailer disponibilizado em seu canal de YouTube para divulgar o álbum, lembrando que começou a acordar entre três e meia e cinco da manhã “e as palavras simplesmente vinham. Eu coloquei no papel e comecei a juntar tudo.” Tudo isso resultou na gravação do álbum. Quem acompanha o artista, sabe que ele é daqueles que se debruçam sobre as canções para burilá-las, até que cheguem ao formado que lhe agrade. Esse disco saiu num susto. Num sonho. É o espirito pedindo passagem.
Um homem de oitenta anos pensa inevitavelmente na morte e em Deus. É consolador que seja assim: é, de qualquer jeito, uma sabedoria. Esse disco, a exemplo de Blackstar, de David Bowie e de I Want it Darker, de Leonard Cohen (eu estaria mentindo se dissesse que não pensei em A Tempestade, da Legião Urbana), é uma espécie de testamento. Os temas são a fé (e a crise da fé) e o embate com a finitude. O cantor também revelou que perdeu repentinamente a audição do ouvido esquerdo em um processo que se iniciou durante a gravação: “Ninguém sabe o que aconteceu”. Tudo vai se despedindo ao entardecer da vida, a visão vai esmaecendo, a sensibilidade auditiva diminuindo, e o corpo dando lugar ao reino do espírito.
E enquanto se despede deste mundo, o homem pensa nas coisas mais importantes, nas questões mais prementes. Um testamento se ocupa das coisas que ele não pode deixar irresolvidas. O compositor norte-americano parece estar exatamente nesse estágio.
Os salmos de Paul Simon, que formam uma peça única subdividida em sete movimentos, aos quais deu tratamento acústico, abordam esses tipos de tema. Guiado pelo violão e por uma voz límpida, o acompanhamento discreto da instrumentação — sinos, gongos, vibrafones, órgãos, percussões — é um dos achados do álbum, com destaque para a participação vocal de Edie Briekell, esposa do cantor. Também participam o grupo vocal Voces8, o trompetista Wynton Marsalis e diversos músicos de câmara.
O disco começa com um som que parece o repicar suave de um sino. O violão, ao que indica, cita o clássico tema instrumental Anji, de Davy Graham, gravado brilhantemente por Bert Jansch, em seu homônimo disco de estreia, e pelo próprio Paul Simon (no álbum com Garfunkel, Sounds of Silence). Esse tema irá reaparecer. Simon é um grande violonista, sensível e dono de uma rusticidade charmosa.
Liricamente, “The Lord” é uma jornada em busca de Deus. Seus versos não deixam dúvida de que o autor está buscando o que ainda não encontrou:
O Senhor é o meu engenheiro
O Senhor é a terra em que piso
O Senhor é uma face na atmosfera
O caminho pelo qual escapo e deslizo
Aquela deliciosa fioretti que dá conta de um pequeno Tomás de Aquino puxando o hábito dos monges beneditinos e perguntando “quem é Deus?” habita a imaginação da humanidade. Todo homem é um menino querendo saber quem é Deus. Paul Simon vai procurando e deixando alguns achados pelo caminho. ”O Senhor é o meu engenheiro, é a terra que percorri. O Senhor é uma floresta virgem. O Senhor é um guarda florestal”. Em dado momento, escreve versos surpreendentemente eucarísticos (Simon é judeu, mas aparece numa foto de divulgação do disco empunhando uma pulseira budista japamala e um terço enrolados no braço): O Senhor é uma refeição para o mais pobre dos pobres / Uma porta de boas-vindas ao estranho.
Sem esquecer do verso mais duro, que coloca na jogada o inescapável problema do mal: O vírus do Covid é o Senhor.
"Love Is Like a Braid", o segundo movimento da suíte, é bonita demais. A letra merece uma transposição para o português de Igor Barbosa (e, por favor, observem que obra-prima de tradução):
O amor, o amor é como uma trança:
E há quem diga que eu que eu duvidarei
de conchas, pentes de jade e de faiança
para ornamentar o que penteies.
Uma vida vivi de dores deleitosas
até que veio a hora em que tudo é a valer;
partido eu, um graveto à noite tempestuosa,
chama-me pelo nome e hei de te atender.
E na hora em que se deve rezar e restar,
na qual razão e dúvida seguem além,
um júri reuniu-se para me julgar:
Está tudo perdido ou está tudo bem?Lar, ó meu lar, ó sol nas minhas portadas:
Choca-me descobrir
que novamente sou criança geminada
dentro de teu amor,
tua luz
tua doce sombra de verão.
Guarda o jardim a rosa e seu espinho
e feita a escolha, avança
a vida do que era no que está sozinho:
O amor, como uma trança.
O amor é uma trança.
É uma meditação sobre amor e vocação. Paul Simon sabe que as dores deleitosas não bastam para colocar homem no trilho da verdade. É preciso que chegue aquela hora em que tudo é a valer, que nos parte como a um graveto à noite tempestuosa. Só assim descobrimos nosso verdadeiro nome, pelo qual somos chamados, e atendemos à voz que nos insere nesse tempo de oração e espera, onde habitam a dúvida e a razão, e no qual
um júri reuniu-se para me julgar:
Está tudo perdido ou está tudo bem?
Esse é um Paul Simon menos pop e talvez menos preocupado com o formato canção e mais interessado na transmissão de impressões. Essa é a interpretação mais comovente do disco. Só o amor dá significado ao sentimento absurdo que experimentamos diante da finitude.
A suavidade atmosférica de repente dá lugar a um violão de pegada country-blues e surge a canção mais destoante do disco. A mais irreverente também. Para explicar que é só mais um buscador e não tem as respostas, Simon diz:
Não sou doutor nem pregador
Nem tenho uma estrela-guia só minha
Então volta o tema-guia de Anji numa versão reduzida, que vai se tornando mais enérgica, dessa vez chamada The Lord Reprise. O cantor continua sua ladainha em busca do Senhor. Simon não está brincando. Aliás, quem observa seu semblante nas apresentações mais recentes sabe disso. Está quase sempre sério. Diria sisudo. É um homem que parece estar levando a vida a sério.
Your Forgivness nos introduz novamente numa espécie de salmodia. O violão volta a ficar atmosférico e faz a cama para um Simon quase místico implorar por perdão — “Sou o último da fila, esperando que os portões não se fechem antes de encontrar Seu perdão” — ao mesmo tempo em que joga suas dúvidas em cima da mesa:
Tenho minhas razões para duvidar
A luz branca alivia a dor
Dois bilhões de batimentos cardíacos
Ou tudo começa de novo ?
Trail of vulcanoes, que continua na pegada reflexiva, é um exame de consciência. O cantor lembra que costumava carregar seu violão pelas encruzilhadas e pelos mares. Mas agora ele olha para trás e vê que essas estradas percorridas formam uma “trilha de vulcões”. O tempo passa rápido, mas “continuamos na mesma estrada”. E parece que “onde quer que ela termine, a pena é o próprio estrago que foi feito. E que deixa tão pouco tempo para reparações.”
Apesar da conclusão tão dura e realista, as duas últimas canções — e mais uma reprise de The Lord —, que contam com a participação preciosa de Edie Briekell, parecem as mais cheias de esperança e fé. The Sacred Harp mostra um caminho aberto para a crença. Simon relembra, contando uma história de caroneiros, tão típica de sua geração de folk singers, acompanhado da bela voz de sua esposa, que a música é um veículo privilegiado para a espiritualidade:
Da doce e sagrada harpa
Que do louvor David fez canção
Ansiamos por ouvir as árias
Que lhe incendiaram o coração
E conclui, antes de dizer, “deixamos a picape na garagem e a lua apareceu como âmbar em meio à névoa”:
As cordas [da harpa] a embalar
O pensamento de que Deus transforma música em felicidade
Para contrabalancear a placidez das duas canções, o retorno de The Lord traz novas questões existenciais entre os surpreendentes versos da jornada de Simon:
O Senhor é uma nuvem de fumaça
Que desaparece ao soprar do vento
O Senhor é minha piada pessoal
Meu reflexo na janela
Tenho pensado em nossa conturbada natureza
Nossa bênção e maldição
Somos apenas tentativa e erro
Um entre bilhões no universo ?
Apesar de, em Wait, o último movimento da suíte, Simon dizer que “deseja acreditar”, é impossível não notar o impasse diante da própria mortalidade. Os últimos umbrais serão sempre os mais difíceis de serem atravessados. Espere. A vida é como um meteoro. É como uma volta de carro numa cidadezinha do interior. Você fecha os olhos e ela passou. É “uma transição sem sonhos”. Por isso , “preciso de você aqui ao meu lado, meu lindo guia misterioso”. Espere, eu não quero ir. “Não estou pronto. Estou apenas arrumando meu equipamento”. A canção se desenvolve nesse impasse, até desembocar numa belíssima sequência final:
A vida é um meteoro
Deixe que seus olhos contemplem
O Céu é bonito
É quase como estar em casa
Preparem-se, crianças
É tempo de voltar pra casa.
E tudo termina com um grande e quase litúrgico “Amém”.
Ainda que esse não seja o último álbum de Paul Simon — nós esperamos que de fato não seja — é definitivamente um disco de despedida.
Aqui está o trailer do disco:
E aqui, as letras:
["The Lord"]
I've been thinking about the great migration
Noon and night they leave the flock
And I imagine their destination
Nettle grass, jagged rock
The Lord is my engineer
The Lord is the earth I ran on
The Lord is a face in the atmosphere
The path I slip and slide on
Tu lu, lulu lu...
Crystal comet
Starlit night
Silver moon
To smooth the edge of daylight
Now it turned, evening rose
Tribal voices
Old and young
Celebrations
A history of family sung
The endless river flows
The Lord is my engineer
The Lord is the earth I ran on
The Lord is a face in the atmosphere
The path I'll slip and I'll slide on
The Lord is a virgin forest
The Lord is a forest ranger
The Lord is a meal for the poorest of the poor
A welcome door to the stranger
Tu lu, lulu lu...
Tears and flowers
Dry over time
Memories leave us
Melody and rhyme
When the cold wind blows
The seeds we gather
From the gardener's glove
Live forever
Nothing dies of too much love
The Lord
The Lord is the earth I ride on
The Lord is a face in the atmosphere
The path I'll slip, and I'll slide on
The Lord is a virgin forest
The Lord is a forest ranger
The Lord is a meal for the poorest
A welcome door to the stranger
The Covid virus is The Lord
The Lord is the ocean rising
The Lord is a terrible swift song
A simple truth
Surviving
Tu lu, lulu lu...
["Love Is Like a Braid"]
Love is Like a braid
Some say that I that'll disbelieve it
Cowry shells
Fine combs made of jade
To ornament and weave it
I lived a life of pleasant sorrows
Until the real deal came
Broke me like a twig in a winter gale
Call me by my name
And in that time of prayer and waiting
Where doubt and reason dwell
A jury sat deliberating
All is lost
Or all is well
Home, home, sun on my doorstep
Shocks me to find
I'm a child again entwined
In your love
In your light
In your cool summer shade
The garden keeps a rose and a thorn
And once the choice is made
All that's left
Is mending what was torn
Love is like a braid
Love is like a braid
["My Professional Opinion"]
Good morning, Mr Indignation
Looks like you haven't slept all night
In my professional opinion
Go back to bed and turn off your light
I'm not a doctor or a preacher
I've no particular guiding star
In my professional opinion
I'm no more satisfied than you are
So, what in the world we whispering for?
Everyone's thinking there's nothing to hide
Come carry my grievances down to the shore
Wash 'em away in the tumbling tide
I heard two cows in a conversation
One called the other one a name
In my professional opinion
All cows in the country must bear the blame
So, all rise to the occasion
Or all sink into despair
In my professional opinion
We're better off not going there
Oh, what in the world we whispering for?
Everyone's making there's nothing to hide
Go carry my grievances down to the shore
Wash 'em away in the tumbling tide
Wash 'em away in the tumbling tide
Wash 'em away in the tide
All that really matters is the one who became us
Anointed and gained us with his opinion
["The Lord Reprise"]
The Lord is my engineer
The Lord is the earth I ride on
The Lord is a face in the atmosphere
The path I'll slip and I'll slide on
The Lord is a virgin forest
The Lord is a forest ranger
The Lord is a meal for the poorest of the poor
A welcome door to the stranger
The Covid virus is The Lord
The Lord is the ocean rising
The Lord is a terrible swift song
A simple truth, surviving
Tu lu, lulu lu...
["Your Forgiveness"]
Yesterday's boy is gone
Driving through darkness
Searching for your forgiveness
Is sorrow a beautiful song?
Lives in the heart and sings for all
Your Forgiveness
Inside the digital mind
A homeless soul ponders the cold
Of forgiveness
And I the last in the line
Hoping the gates won't be closed before
Your forgiveness
Dip your hand in Heaven's waters
God's imagination
Dip your hand in Heaven's waters
All of life's abundance in a drop of condensation
Dip your hand in Heaven's waters
Ooh, ooh
I, I have my reasons to doubt
There is a case to be made
Two billion heartbeats and out
Waving a flag in the last parade
I have my reasons to doubt
Dip your hand in Heaven's waters
God's imagination
Dip your hand in Heaven's waters
All of life's abundance in a drop of condensation
Dip your hand in Heaven's waters
I have my reasons to doubt
The white light eases the pain
Two billion heartbeats and out
Or does it all begin again?
Dip your hand in Heaven's waters
God's imagination
All of life's abundance in a drop of condensation
["Trail of Volcanoes"]
When I was young
I carried my guitar down to the crossroads
And over the seas
Now those old roads are a trail of volcanoes
Exploding with refugees
It seems to me
We're all walking down the same road
To wherever it ends
The pity is
The damage that's done
Leaves so little time for amends
["The Sacred Harp"]
A change of mood
A summer storm erased the sunny sky
Two hapless hitchhikers were signalling us
As we were cruising by
Not in the mood
For idle chat, for hitchhiker company
Nevertheless, we took them on
This highway courtesy
"Hurry, get yourselves inside the truck
We're just going up a ways
The rain should turn to mist with any luck
And you can find a place to stay"
The woman spoke, her voice a blend of regional perfumes:
"We have no destination
The moon and the stars provide us with our rooms
My boy and me were refugees of sorts from my hometown
Then all life different now
They would have mowed us down
He doesn't talk much anymore
Just to the voices in his head"
The boy just gazed down at the floor
And nodded once or twice
At what she said
The sacred harp
That David played to make his songs of praise
We long to hear those strains
That set his heart ablaze
The ringing strings
The thought that God turns music into bliss
We left the pickup in the driveway
The moon appeared as amber in the mist
["The Lord Reprise"]
The Lord is a puff of smoke
That disappears when the winds blow
The Lord is my personal joke
My reflection in the window
I've been thinking about our troubled nature
Our benediction and our curse
Are we all just trial and error
One of a billion in the universe?
Tu lu, lulu lu...
The Lord is my engineer
The Lord is my record producer
The Lord is the music I hear
Deep in the valley of elusive
The Lord is my engineer
The Lord is the train I ride on
The Lord is the coast, the coast is clear
The path I slip and slide on
Tu lu, lulu lu...
["Wait"]
Wait
I'm not ready
I'm just packing my gear
Wait
My hand's steady
My mind is still clear
I hear the ghost songs and old
Jumpin', jivin', moanin'
Through a heart broken microphone
Wait
Life is a meteor
Let your eyes roam
Heaven is beautiful
It's almost like home
Children get ready
It's time to come home
I want to believe in
A dreamless transition
Wait
I don't want to be near
My dark intuition
I need you here by my side
My beautiful mystery guide
Wait
Life is a meteor
Let your eyes roam
Heaven is beautiful
It's almost like home
Children get ready
It's time to come home
Amen