Tempestades mentais sobre quase tudo: uma apresentação
Deve ser difícil escrever uma newsletter. Vamos tentar.
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Tenho dificuldade hoje de sair da literatura, da poesia e da ficção para a não-ficção. É a ficção que me joga na realidade. A imaginação é minha antena.
A área que mais me interessa é uma intermediária entre a ficção e o ensaio, a reflexão ou mesmo o romance. A autoficção de autoras como Patti Smith, Natalia Ginzburg ou Joan Didion. Acho que também fazem “literatura de imaginação”. São ficcionistas, são pensadoras e são escritoras de diários, anotadoras de sonhos, memorialistas, escritoras de relatos. A memória também é uma via para a imaginação.
Eu gostaria de fazer da newsletter um exercício ou uma tentativa desse tipo de escrita de si mesmo, que é o que às vezes já venho tentando fazendo em alguns posts nas redes sociais. Quem já leu “Linha M”, “O Ano do Macaco”, de Patti Smith, ou “As Pequenas Virtudes”, de Natalia Ginzburg, saberá qual o meu modelo. Não sei se conseguirei. É certo que nesta primeira, que é ainda um pequeno experimento, não conseguirei.
Sejam todos bem-vindos.
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Algumas notinhas de 2018 não publicadas que recauchutei (atualizei), mas não terminei, sobre um filme extraordinário:
— “First Reformed”, que a princípio teve como título português “No Coração da Escuridão”, ao entrar no catálogo da Netflix foi nomeado “Fé corrompida”, talvez tenha sido o melhor filme a que assisti em 2018. Dirigido por Paul Schrader, habita o universo do “estilo transcendental” (expressão que o próprio Schrader utilizou em seu livro “Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer”). Além dos já citados no título do livro, também cabem no estilo transcendental Terence Mallick e Andrei Tarkowski. Já sabem, aquele tipo filme lentão, contemplativo, que conta com a sua paciência e exige que você se desligue de tudo para apreciá-lo. Um estilo de filme que é quase curativo para os nossos tempos velocíssimos em tudo. Meu filho mais novo não consegue parar para ver nem os blackbusters que não tenham explosões, ações, luzes e cores o tempo todo. Minha filha mais velha está mergulhada comigo nos filmes do Studio Ghibli, que têm um quê de contemplação da beleza, apelam à imaginação e conseguem nos retirar por uma hora de pouco deste mundo louco (e lindo!) e fazer com que habitemos mundos oníricos, de fadas, bruxas, monstros e pequeninos.
—“First reformed” faz referências claras a “Diário de um Padre”, de Bresson e “Luz de Inverno”, de Bergman, tanto narrativas quanto visuais: um ministro cristão em crise, com câncer, dado ao álcool, que anda de bicicleta, a pequena assembléia da Igreja, o ministro envolvido com ativismo ambiental. Os diálogos sobre desespero e esperança são profundamente bernanosianos.
— A batalha entre fé agônica e a fé “chestertoniana” (não à toa há Chesterton na cabeceira do reverendo Toller), a fé do jardim(“você está sempre no jardim!”), da angústia, do desespero, da noite escura versus a fé da alegria, do Deus que se manifesta no mundo criado, no amor natural e prazeroso é um dos temas da película. Tenho pensado, nos últimos anos, sobre essa face angustiada da literatura católica francesa (Bernanos, Mauriac, Bloy) e a alegria luminosa da literatura católica inglesa (Chesterton, Waugh, e a maravilhosa — voltando atrás no tempo — Lady Julian de Norwich: “O fim de todas as coisas será bom. Repito: O fim de todas as coisas será bom”). Isso renderia um bom ensaio se alguém tivesse tempo e disposição para tanto.
— Mary é óbvia representante da graça e da esperança(com o nome da Mãe do Senhor), está grávida (representa redenção e esperança para Toller, que perdeu um filho e “fracassou” como esposo e pai de família), também é crente, representa uma nova vida, nova criação. Estamos tão distantes do Natal, mas, uma mulher grávida é sempre uma graça e uma esperança em meio ao caos. Essa é a história do Natal.
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Não pode haver separação entre Cristo e o homem. É ontologicamente impossível. O pecado, permitido por Deus por amor à liberdade humana, é a maior loucura e ao mesmo tempo a maior cegueira do homem.
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Até há uns doze anos, ao me deparar com algum tema teológico mais complexo, cansei de dizer: isso é coisa para os filósofos e teólogos, nosso negócio é rezar e pregar. Sem querer, semeei um fideísmo muito barato. Nosso negócio é entender, é pensar, é usar a inteligência, pregar e rezar. É mergulhar nosso entendimento, mente e inteligência na contemplação. Não existe uma dicotomia entre inteligência e oração (“A fé e a razão -fides et ratio- constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” — “A Fé e a Razão”, João Paulo II). Todo homem, feito à imagem e semelhança de Deus, é dotado de inteligência, vontade e liberdade. Dizer que pensar é coisa de filósofo é burrice. Pensar é coisa de homem. E “quem reza é teólogo” (Evágrio). Quem reza, pensa e mergulha a inteligência na oração. A oração que exclui a inteligência cai no devocionismo pueril.
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Mas, na verdade, outra parte do meu ofício também me fez ter certeza de que você não era padre.
– O quê? — perguntou o ladrão boquiaberto.
– Você atacou a razão — disse Padre Brown.
– Isso é má teologia.
(“A Cruz Azul”, G.K. Chesterton)
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Vou deixar aqui a tradução de uma resposta de Nick Cave para o The Red Hand Files (Edição nº 33 / março de 2019) e já volto:
Você já quis simplesmente desistir e abandonar tudo, por causa da sua voz interior? URSULA, VARSÓVIA, POLÔNIA
Você já sofreu uma crise de confiança? JOE, EDMONDS, EUA
Às vezes me odeio e me pergunto por que me incomodo com isso. ROD, NOVA ORLEANS, EUA
Você tem um crítico interno severo?SOPHIA, LIVERPOOL, RU
“Queridos Ursula, Joe, Rod e Sophia e muitos outros mais,
Não sei quantas vezes me fizeram essa pergunta, ou alguma versão dela, em The Red Hand Files. Deixem-me dizer o seguinte — o “crítico interno severo” dos quais vocês falam não é exclusivo. A verdade é que praticamente toda pessoa que está tentando fazer algo que valha a pena, especialmente no âmbito da criatividade, tem sentado em seu cérebro, um homúnculo horrível que sopra uma pequena e terrível trombeta que só conhece uma música — uma canção que diz: “Você não são bons o suficiente. Porque se importar?” Este pequeno gnomo malvado está cheio de bad jazz e é, nas palavras do autor Sam Harris, “um idiota”. Inimiga da aspiração, essa atroz voz interior exige que você se afaste de qualquer caminho que te conduza à sua vocação superior e se torne uma versão de segunda categoria de si mesmo. Como um acusador pessoal muito próprio, é profundamente persuasivo em suas sombrias negociações. Muitos de nós ouvimos e aceitamos sua mensagem, e muitos de nós levantamos nossas mãos e nos entregamos. O problema, claro, é que essa voz interior, esse homúnculo monstruoso, é você mesmo.
O ato criativo é um ato de guerra — em que pese ser esse crítico interno seu adversário, ele também é fundamental para o processo criativo. É com ele que qualquer pessoa que se preze está lutando o tempo todo — estamos em uma batalha perpétua contra a versão inferior de nós mesmos. Perder a batalha é tornar-se a própria personificação do homúnculo. Derrotados, não fazemos nada a não ser nos sentarmos em perpétuo julgamento do mundo, assistindo preguiçosamente, enquanto ele, em chamas, se esvai. Por mais cruel que seja, essa luta contra nós mesmos é exatamente o conflito que coloca o sangue na arte, e também as lágrimas; e imprime profundamente as cicatrizes da batalha no próprio trabalho.
O mundo, com todos seus problemas, é um extraordinário experimento da exuberante imaginação humana. No que tem de melhor, ele perdura porque houve pessoas que tiveram a coragem de ir em frente com uma ideia — que não se submeteram à voz interior que lhes dizia, “Você é inútil. Para quê se esforçar?”
Eu já disse isso antes. Boas ideias abundam. Essas ideias flutuam ao nosso redor, ideias que podem ser de imensa utilidade para o mundo. Algumas ideias têm nossos nomes singulares inscritos nelas e é nossa responsabilidade ir além de nosso eu inferior, chegar à versão mais brilhante do que podemos ser e dar vida a essas ideias. Esse audácia é quase sempre acompanhada pelo miserável homúnculo e seu mantra sombrio de incompetência pessoal, mas é nosso dever sagrado nos virar e chutar as bolas desse filho da puta. A luta contra a força das trevas dentro de nós é a forja em que a verdadeira arte é esculpida.
Com amor,
Nick
P.S. Um homúnculo é uma criatura humana ou humanóide muito pequena.”
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Voltei para encerrar a primeira newsletter com o meu próximo texto para a Associação Thomas Merton Brasil, que vocês estão recebendo com exclusividade. Vamos lá. Ainda volto para uma despedida.
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A liberdade humana, com suas escolhas e decisões, é a construtora da história. O Verbo Divino, ao encarnar-se, projeta uma luz na história, recapitulado em si, misteriosamente, todos os eventos passados e futuros. A história inteira é “julgada” mediante esta recapitulação de tudo o que existe no Verbo. Cristo é a luz que, tendo vindo ao mundo, ilumina toda a história e cada homem. Ninguém mais é obrigado a decidir sozinho, pois tem a Luz de Cristo. O discernimento espiritual do homem livre é feito à luz do Verbo. E todas os fatos e escolhas passadas são igualmente recapituladas sob esta luz, adquirindo novo sentido.
Deus não joga fora nada do que vivemos. Toda vivência e experiências passadas, dos detalhes mais dolorosos aos jubilosos, interessam ao Cristo e formam aquilo que alguém chamou de “história da salvação pessoal”, que é uma intra-história da salvação (inserida, por óbvio, na macro-história da salvação). Nada vai, como se diz por aí, para a “lata de lixo da história”. Os grandes mestres espirituais são aqueles que orientam e ajudam na identificação e na reconstrução de nossa história a partir desta recapitulação feita por Cristo. Ninguém tem o direito de dizer que aquilo que experimentamos e vivenciamos em nossa história pessoal não vale nada. Cada conselho de avó, eventos familiares, o que aprendemos na escola, nas ruas, com os amigos, na universidade, tudo isso, recapitulado em Cristo, forma nossa história de salvação pessoal.
O que Santo Agostinho, mas suas “Confissões” e o nosso querido Thomas Merton, na “Montanha dos Sete Patamares” fizeram, com seus gênios literários e criatividade, tem um pouco disso: história da salvação pessoal. Um olhar para si próprio sob o olhar onisciente e amoroso de Deus. Agostinho, Thomas Merton, Santa Teresa, Santa Teresinha e outros, puxaram a fila para que também nós ousássemos escrever, em nossos cadernos, celulares, computadores ou mesmo apenas nas tintas da memória, nossa autobiografia espiritual. Já se tem dito por aí a importância de um diário ou das páginas matinais. Fazer isso é trilhar o caminho do autoconhecimento e é matéria de salvação. Nem todos estão interessados em descobrir a própria vocação ou insistem em dar sentido a todo e cada acontecimento da vida, bastando-lhes apenas viver e rezar, como dizia o famoso conselho do Padre Pio: “Reze, tenha confiança e não se preocupe”. Mas a outros Deus chamou para a aventura da vida examinada, para a complexidade do pensamento e para a observação contínua dos eventos interiores. A estes irá fazer um bem enorme a construção de uma autobiografia espiritual.
E é bem provável que os amigos de Thomas Merton sejam trilheiros deste caminho.
Sigamos.
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A newsletter, você deve ter percebido, está cheia de links da Amazon para venda de livros. Comprando os livros por esses links você me ajuda. Vou deixar aqui mais alguns links:
Meu atual podcast favorito, com Roberto Miguel.
Um texto de minha autoria sobre uma série que amo: Fleabag.
Gosto pra caramba do Cadão Volpato.
Uma entrevista já antiguinha no meu ex-podcast com minha amiga Juliana Amato.
Um podcast português legal pra caramba: Agora, agora e mais agora.
Dois poetas e um padre conversando sobre poesia.