Nasci em 1975 em Cantagalo, uma cidade da região norte do Estado do Rio de Janeiro. No mesmo município onde nasceu Euclides da Cunha. Não só nasci nesta cidadezinha do interior, mas nela cresci e lá vivo até hoje. Toto, de “Cinema Paradiso”, partiu para depois retornar, cheio de nostalgia, quando recebeu a notícia da morte de Alfredo. O Selvagem do Motocicleta partiu, tornou-se uma lenda e voltou para concretizar seu destino. Eu nunca parti. Minha sina foi permanecer. Eu nunca saí de Cantagalo. E quando saio, para algum evento ou compromisso, não demora muito para eu querer voltar. E quando volto, e avisto aquelas velhas palmeiras, aquele antigo jardim, a praça, a matriz e aqueles mesmos rostos conhecidos de sempre – eu não sirvo para morar num lugar onde simplesmente você sai na rua e ninguém se conhece – eu sinto emoção. Sinto uma emoção boa.
Vivi minha adolescência nos anos 80. Aqui, na roça, ninguém tinha videocassete, fora algumas poucas famílias abastadas. Nós, que tínhamos menos dinheiro, íamos ver filmes nas casas dos amigos ricos. Era a época dos filmes clássicos dos anos 80, que víamos alugados em cópias piratas da única videolocadora da cidade. Não me lembro de muitos filmes dessa época, nem dos pornográficos (me lembro da sensação), que víamos aos borbotões. Os filmes que mais me marcaram foram vistos no cinema: “E.T”, “Gremlins”, “Howard”, “Os Goonies”, “De volta para o futuro”. O único filme do qual agora recordo de ter visto na casa de um amigo rico foi “Os aventureiros do bairro proibido”. E, claro, “The outsiders – vida sem rumo”, cuja experiência já narrei em outra newsletter. Minha família só comprou um videocassete no fim dos anos 80. Nessa época eu já gostava de cinema mais de autor e tinha duas VHS com “Estranhos no paraíso”, “Paris, Texas”, “Deus e o diabo na terra do sol” e “O Selvagem da Motocicleta”. Eu tratava essas fitas como algo sagrado. E claro, tinha uma outra VHS com “Curtindo a vida adoidado”, que eu via e revia obcecadamente a ponto de decorar diálogos, cenas e falas inteiras do filme. Eu era fã de Ferris Bueller e queria ser como ele, mas a verdade é que eu habitava num dos milhares de pontos existentes entre o Cameron e o Bueller. Longe de um e outro, eu estava ali naquele meio. E era apaixonado pela Mary Stuart Masterson de “Some kind of wonderful“. E gostava demais de Matt Dillon. Matt Dillon foi o James Dean da minha geração: “The Outsiders”, “Rumble Fish”, “Tex” e “Drugstore Cowboy”.
Nunca fui muito fã de televisão. A televisão para mim era um veículo para filmes, futebol e música. Só fui assistir séries do começo ao fim na era da internet. Meus desenhos animados favoritos eram Smurfs, Thundercats, Speed Racer. E, assistia, claro, ao famoso seriado Spectreman. O Japão já me atraía, de alguma forma. Eu também gostava de Don Dracula. Na televisão também me fascinava a série do documental “Mundo animal”.
A música entrou na minha vida porque nos anos 80 era quase obrigatório gostar de música pop ou rock. Os primeiros contatos com esse mundo com certeza vieram com o fenômeno Michael Jackson, a vinda do KISS ao Brasil e o Rock in Rio. Me lembro da sensação estranha que foi ver aquele cara esquisito feio pra caramba de óculos quadradinhos cantando com uma voz grave e balançando os braços de maneira de espasmódica no programa Mixto Quente, onde as bandas de rock se apresentavam na praia e a Rede Globo transmitia. Depois vieram os discos: o “Dois” e o “Longe demais das capitais” eram da minha irmã mais velha, meu pai havia acabado de presentear minha mãe com o “Press to play”, do Paul McCartney, no dia dos namorados de 1986. Ademais, havia na discoteca da minha mãe o “Sgt Peppers” e o “Álbum Branco” dos Beatles, além do segundo dos Mutantes. Minha mãe, que era petista e subia em caminhão para conclamar greve dos professores , gostava da Plebe Rude e me comprou o primeiro disco, além do “Sessão da tarde”, do Léo Jaime. O primeiro show foi em Cantagalo, o “Show da Independência”, em 6 de setembro de 1987, com a Plebe lançando o “Nunca fomos tão brasileiros” e com abertura de João Penca e Seus Miquinhos Amestrados e Celso Blues Boy. A partir de 1987, todos os meus presentes de aniversário e de natal foram discos. Discos, discos e mais discos.
Outra paixão eram os livros. O primeiro que me bateu foi “O Menino Maluquinho”. Mas antes havia “Chapeuzinho Amarelo” (de Chico Buarque), “Rente que nem pão quente”, “A centopéia e seus sapatinhos”, “Sangue de barata”, “Marcelo, Marmelo, Martelo”. Minha mãe sempre encheu a casa de livros. E, antes da música, sempre nos deu muitos livros. Mamãe nos dava livros e papai colocava o jornal diário em nossas mãos. Foi na sessão de cultura, nos segundos cadernos dos jornais e lendo colunistas e cronistas como Paulo Mendes Campos, no Jornal do Brasil e Artur Dapieve, no Globo, que fui apurando um gosto literário. E, antes de tudo, ou paralelo a tudo isso, havia os gibis: Heróis da TV, Almanaque do Aranha, Superaventuras Marvel, a Espada Selvagem de Conan. Fui obcecado por HQs durante um bom tempo. E depois, veio a Bizz (revista de música e cultura pop). Ler a Bizz me jogou em um mundo novo. Os jornalistas e colunistas da Bizz não só me introduziram no mundo na música cult e alternativa: o pós-punk (Joy Division, The Cure, Siouxie and the Banshees, Echo and the Bunnymen,P.I.L., Durutti Column), as bandas independentes (Smiths, R.E.M., Cocteau Twins, New Order), assim como seus inspiradores (Velvet Underground, Doors, Stooges, Bowie, Roxy Music), como abriram minha cabeça para o cinema de autor (Coppola, Woody Allen, Scorcese, Jim Jarmush, Wim Wenders, Fellini, Kieslowski) e para a literatura, especialmente os Beats e os escritores malditos. Não posso dizer que não fui influenciado pelo texto de Fernando Naporano, José Augusto Lemos e Pepe Escobar, por exemplo. E mamãe tinha uma biblioteca fantástica: Hermann Hesse, Dostoievski, Shakespeare, Kafka, Machado, Graciliano, Clarice, Drummond, Bandeira e Vinícius.
Cantagalo era – e ainda é – o lugar mais tranquilo para se viver. Nada de assaltos e assassinatos, as ruas eram calmas, nós brincávamos na praça, no jardim, fazíamos dos paralelepípedos o pátio de nossas casas, íamos de bicicleta para o colégio e brincávamos todos juntos. Eu nunca gostei muito de esportes, mas jogava futebol porque naquela época todo menino era obrigado a saber pelo menos os fundamentos básicos. Também nunca gostei muito das brincadeiras e dos brinquedos de criança, mas gostava de assistir: peões, futebol de botão, bola de gude, pipas e papagaios, etc. Mas o meu mundo mesmo era o da cultura e da imaginação. O meu mundo físico íntimo era o quintal do meu avô: ali, entre galinhas, minhocas, sabiás, goiabeiras, laranjeiras, pessegueiros e o cachorro Benji, eu construía meu castelo e habitava em florestas, transportava os livros e filmes para o teatro da microrrealidade.
É clichê dizer que o tempo passava mais devagar, mas é preciso dizer que o tempo parecia flanar vagarosamente como urubus - quase parados no ar - numa tarde de verão. O tempo era gigantesco quando éramos crianças. Hoje, uma semana passa como um furacão não deixando pedra sobre pedra. Ou melhor, deixando a gente sem conseguir fazer tudo o que devia, apesar da rapidez com que a gente consegue fazer as coisas.
Os anos 80 foram os anos da minha infância e da minha primeira adolescência. Quando eu comecei a ouvir o programa Novas Tendências na Rádio Cidade, comandado por José Roberto Mahr, os Pixies já tinham lançado Bossanova e o rock alternativo de Manchester estava se misturando à house music e aos sons eletrônicos. Estava começando uma nova era. Eu já estava lendo Caio Fernando Abreu; Renato Russo começou a falar que gostava de meninos e meninas e Cazuza morreu de Aids. Foi neste mesmo programa Novas Tendências, por volta de setembro de 1991 que Mahr tocou “Smells like a teen spirit”, de uma banda chamada Nirvana, “Siva”, da banda Smashing Pumpkins e “Even flow”, de outra banda chamada Pearl Jam. Eu senti que uma pá de cal fora jogada sobre o caixão dos anos 80. E sobre a minha inocência também.
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não estime a poesia
a poesia só é útil para edificar
a alma média da classe
de nada servem os poemas
puros signatários da beleza
que leva a Lugar Algum
estime o dinheiro que compra
prazer à insipida língua
ausente-se ao ócio dos poetas,
fracassados sem poder:
sua técnica só capta o lúdico
transcendente passageiro
estime o dinheiro
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Sempre achei que tive o privilégio de conversar com alguns autores os quais considero dos mais interessantes da minha geração. Não posso deixar de registrar o conteúdo de algumas dessas conversas aqui. Os próximos pontos , do 1 ao 7, foram escritos por Igor Barbosa numa conversa em um app de mensagens.
Cuidado comigo. Eu converso com escritores para roubar conversas. Sou um Nelson norte-fluminense. Por enquanto, aviso que estou roubando e credito os autores.
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1.Se a literatura não serve para reordenar conceitos na mente do leitor, ensinando-o algo e mudando-o, o que o Jorge Amado, para usar um exemplo de esquerda, estava tentando fazer?
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2. Não é que a literatura deva ser catequética ou não deva ser catequética, ela é tão catequética quanto é verdadeira. Não é opcional.
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3. Se você escrever uma história besta sem nenhuma intenção expositiva, ao fazer isso *bem feito* já está testemunhando a ordem e a beleza. Toda história funciona num universo possível, e em todos os universos possíveis, existe um Deus amoroso, mesmo se você inventar um universo sem Deus ou com um Deus mau... Isso é um inferno. E do inferno, pode-se deduzir o Deus bom.
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4. Literatura sem Deus faz tanto sentido quanto culinária sem Deus (que criou os ingredientes) ou engenharia sem Deus (que criou os materiais e as leis da física). Boa sorte aí inventando um universo!
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6. Se Flaubert é deprimente, Camões é o quê? 99% do Camões é "Eu quero comer essa mulher, ela não quer".
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7. Flaubert, ao denunciar a infidelidade, dá testemunho da fidelidade.
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Nossa época está marcada por uma geração de velhos não sábios. Talvez por causa da superabundância e rapidez da informação do mundo tecnológico líquido e pós-verdadeiro. Se antes (sem passadismo nostálgico) os idosos demonstraram a sabedoria de ter sofrido a vida e aprendido, hoje demonstram ser crédulos, tarados, dinheiristas e apegados à juventude, perdidos e sem saber envelhecer numa sociedade que supervaloriza a juventude e o sujeito enquanto consumidor. O idoso aposentado (Deus que me livre, se eu parar de trabalhar eu morro), sabiamente ocioso, lento e vivido como um ent parece não existir mais. O rezador, o bruxo, o mago, o monge, o sábio, aos pés dos quais os jovens e adultos paravam para escutar histórias, causos e beber conhecença e cultivo, desapareceu. O idoso que sabia o seu lugar e não se metia em todas as áreas do conhecimento e não era enganando e ridicularizado. Sabia que o estudado, o professor, o advogado, o engenheiro, os dotôres, possuíam outras formas de conhecimento que não a sua. Não se metiam arbitrariamente em política, não viam pornografia e sabiam observar silenciosamente a vida e dela retirar coisas boas. Eram sábios, portavam-se como tais, mas sabiam-se incompletos e falhos. Como todo bom sábio, conheciam o seu lugar e o seu papel. Mas pensar assim talvez seja preconceituoso e excludente, pois todos têm o direito de ser o que quiserem. Até de estar na crista da onda.
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O sábio religioso — o ministro cristão, por exemplo — era aquele que conjugava o estudo acadêmico com a sabedoria experiencial. Ainda jovem, portava-se como experiente e possuía a teologia e a filosofia. Isso dava-lhe, teoricamente, uma espécie de porte de sábio quase universal ainda na juventude para explicar a religião, governar a igreja e celebrar o culto. Mas hoje todo mundo só quer ser fit, cultivar o corpo, pedalar, frequentar bons restaurantes, ter carros relevantes, morar e viajar bem, estar em dia com as séries vistas num bom iPhone e mostrar tudo isso no Instagram. Enquanto houver burguesia não vai haver poesia, disse Berdiaev.
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A única perfeição possível é o desejo sincero de não mais errar (sabendo que errará novamente).
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Só ficarei preocupado quando magoar, por minha culpa, alguém que me ama efetivamente. Amar efetivamente é preocupar-se comigo, querer o meu bem, buscar a minha companhia e me fazer captar o amor em seus gestos. Ninguém é obrigado a isso; aliás, a maioria da humanidade não é, graças a Deus. Que a maioria das pessoas não precise me amar, demonstrar amor por mim e agir amorosamente para comigo, é uma liberdade e uma bênção.
Sempre vai haver um pequeno entorno de pessoas que formarão um círculo de amor ao meu redor. A esses, preciso pedir perdão sempre e fazer questão de que nunca se afastem. Outros entrarão e sairão do círculo, me abençoando e sendo abençoadas por mim. Têm a liberdade de ir e vir. Quanto ao resto, que não faz parte do meu entorno, merece meu amor e devo, como cristão, amá-lo. Mas não é um amor afetivo nem efetivo: mas devido e possível. Nem todos terão afeto para comigo e nem o receberão de volta; não são obrigados a me entender, a concordar, e nem a conviver comigo. Alguns até ficarão aborrecidos comigo; e eu com eles. Outros, se tornarão desafetos, quiçá inimigos. Caravana que passa. A esses, com os quais não pude conviver de perto pelas desavenças e desafetos, devo minha oração, e desejo sinceramente a salvação de suas almas e espero que a gente se entenda um dia, no céu, já que aqui não foi possível a gente se entender. Vai ser lindo.
A gente fica querendo se encontrar no céu com nossos pais e parentes, amigos e amores. Mas vai ser mais bonito ainda encontrar com quem a gente não pôde se encontrar plenamente aqui nesta vida e não deixou saudade. Veremos que a riqueza das diferenças que não pudemos assimilar na terra agora brilha no esplendor da eternidade, reconciliada em nós e entre nós por Cristo.
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A providência se manifesta para o pobre conforme o versículo, “o meu justo viverá da fé” (Hb10,38). Deus nunca deixa faltar o necessário, mas o pobre está sempre precisando de alguma coisa. Tudo é urgente. E Deus dá o maná de cada dia para o exercício de sua fé. O pobre tem que viver de fé expectante. Tem que rezar para pedir o que precisa. Tem que estar sempre prestando atenção.
Já para o rico é mais difícil perceber a providência. Ele também está sempre a precisar de algo, mas a abundância material desvia sua atenção. Por isso, Jesus, que não quer deixá-lo para trás, chama a sua atenção: “Ai de vós, ricos”. Achar que não precisamos de nada é a grande desgraça. Ter tudo à mão dá essa ilusão. É por isso que Cristo fala que é difícil para o rico seguir o seu caminho, porque ele, mesmo sendo filho, aprendeu obediência por meio do sofrimento.
Jesus transformou o sofrimento em via se salvação. Ele pegou aquilo que é muito próprio do homem — a incompletude, a precariedade, a contingência, a sede constante, a fome que não passa, a insatisfação — e devolveu como matéria de santificação.
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Essas motos que fazem tanto barulho, e as pessoas que conversam tão alto, a ponto de atrapalhar a audição daquele podcast maroto que estamos ouvindo no fone com volume moderado (para não prejudicar mais ainda a audição já maltratada por tantos anos de discos cheios de feedback da adolescência) mostram que estamos longe, muito longe, de sair da barbárie.
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A coisa mais difícil do mundo é ser normal e interessante. Chesterton já explicou que o que causa o espanto é chegar ao mesmo lugar com olhos novos. Os schizos, os escatológicos, os hipsters (hehehe), os que precisam parecer diferentões, os bizarros e os esotéricos, todos terão 15 minutos de glória e desaparecerão. Os normais interessantes, se forem bons de fato, brilhantes, serão incorporados aos clássicos. Ou, ao menos, à tradição clássica. Mas, um lembrete: tradicionalistas são esquizóides.
Outro lembrete: não ser esquisito não é licença para a mediocridade. O normal passa um ar de corriqueiro, mas o espanto tem algo de ineditismo. O artesanato da prática, imbuído de esforço ao sacrifício, stains the white radiance of eyernity.
O destino dos medíocres é unir-se aos anjos mesquinhos.
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Se você não sentiu um arrepio na espinha lendo a descrição do destino dos medíocres no terceiro canto do Inferno de Dante, é porque ou não sabe o que é literatura ou não sabe o que é religião.
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Um dos inícios da maturidade é ter a inocência devolvida (e perdida, e devolvida, e perdida, e, enfim, devolvida) pelo cristianismo.
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Leiam Igor Barbosa.