Tempestades mentais sobre quase tudo 19
Sobre especializar-se em ser aluno e outros temas mais ou menos correlatos
“Além da tristeza, há um aspecto estranho no luto, não há? Ainda me pego retornando ao pensamento: "Como pode o meu pai já não estar aqui? Como isso é possível?" Essas palavras não captam bem o pensamento, mas o que quero transmitir é que há algo de insondável na morte.”
(Ray Monk, que perdeu o pai há poucos dias)
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Se alguém um dia me perguntar qual o meu compositor favorito e eu não responder Burt Bacharach, podem me colocar uma camisa de força. O homem que, depois de ter feito tudo o que fez — ser, por exemplo, gravado por Beatles, Aretha Franklin, Dione Warwick, Stan Getz, Wes Montgomery — ainda nos deu “The Bells of St. Augustine” e “Midnight Watch” para consolar o coração do mundo durante a pandemia. O EP “Blue Umbrella”, que ele lançou com o Daniel Tashian em 2020 durante a pandemia e depois foi acrescentado com mais 4 canções (já tinha 5) e transformado em álbum, é coisa de gênio. Gênio absoluto da canção.
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Uma das faces da depressão é a insatisfação sem a busca. Se Hermann Hesse não buscasse, seria, sem sobra de dúvida, um deprimido. Você consegue imaginar um Peter Carmezind, um Emil Sinclair, um Sidarta ou um José Servo, deitados numa cama, desistindo de viver? Que fique claro: não estou moralizando a questão, só estou olhando para ela.
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No mundo do Instagram todo mundo quer ser professor. Eu estou querendo me especializar em ser aluno. Foi o que me tocou especialmente em A Montanha Mágica, de Thomas Mann. É um romance sobre ser aluno. Quem me ajudou a formular isso foi Harold Bloom, em seu pequeno texto sobre o romance de Mann. Hans Castorp passou a ser meu ideal de aluno:
“Castorp permanece sete anos na Montanha Mágica, para ser curado, e para prosseguir em seu Bildung, ou formação, educação cultural.
Infinitamente capaz de assimilar ensinamentos, imensamente suscetível a colóquios profundos e ao estudo, Castorp é submetido a um extraordinário e sofisticado processo educacional na Montanha Mágica, principalmente, ao interagir com professores antitéticos: primeiro, e prioritariamente, temos Settembrini, humanista liberal italiano, discípulo do poeta e livre-pensador Carducci; mais tarde, na metade do romance, surge Naphta, reacionário radical, jesuíta judeu, marxista-niilista, opositor da democracia, defensor da síntese religiosa medieval e crítico da perda de fé observada na Europa. Os debates entre Settembrini, defendendo a Renascença e o Iluminismo, e Naphta, apóstolo da ContraReforma, são sempre implacáveis (…)”
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Castorp é capaz de ouvir, com igual satisfação, o racionalista Settembrini, o terrorista Naphta, ou o estranho vitalista Mynheer Peeperkorn, que chega à Montanha, tardiamente (…)”
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“Castorp é o aluno ideal outrora proclamado pelas universidades (antes da autodegradação a que tais instituições ora se submetem), e jamais encontrado. Castorp tem imenso interesse em tudo, em tudo que é conhecimento, mas no conhecimento como um bem em si mesmo. Para Castorp, conhecimento não significa, absolutamente, poder, seja sobre terceiros ou sobre ele próprio; conhecimento nada tem de faustiano. Hans Castorp é extremamente valioso para leitores no ano 2000 (e posteriormente), por encarnar um ideal hoje arcaico, mas sempre relevante: o cultivo do desenvolvimento pessoal, de modo a possibilitar a completa realização do potencial do indivíduo. A avidez de confrontar idéias e personalidades está aliada, em Hans, a uma notável energia espiritual; jamais meramente cético, ele, tampouco, se deixa arrebatar (exceto no auge da paixão pela dúbia Claudia). A eloqüência humanística de Settembrini, as exortações terroristas de Naphta, o balbuciar dionisíaco de Peeperkorn inundam Castorp, mas jamais o afogam.”
Ser aluno é que é o negócio. Quando peguei umas aulas de duas, três horas e queria mais, comecei a perceber que aqueles professores - esses que conseguem me plantar numa cadeira por tanto tempo - tinham alguma coisa que era capaz de me colocar no lugar de aluno e ali ficar confortavelmente como se eu tivesse encontrado meu lugar neste mundo.
Agora, o perigo é achar que ser aluno é ser simplesmente discípulo tabula rasa ou uma ovelhinha mansa. Uma das coisas mais impressionantes no romance de Mann é a evolução espiritual de Hans Castorp. Ser aluno não é viver a mercê de seus mestres, mas buscar seu próprio caminho. Cristo passa da questão “quem os homens dizem que eu sou?” para a questão mais vital: “e vós, quem dizeis quem eu sou?”.
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Nunca tive vocação filosófica. Nunca quis e nunca estudei filosofia sistematicamente. Já li Platão e outros filósofos como literatura. É óbvio que tenho a vocação humana para filosofar. Todo mundo tem. Quando li “A Montanha Mágica” percebi que meu campo era a literatura e que eu não precisava abandonar as questões filosóficas, mesmo não me dedicando especificamente à filosofia. A literatura seria o meu meio de filosofar. Acho que esse é o caminho de um monte de gente.
Demorei mais de vinte anos para ler A Montanha Mágica. Comecei a lê-lo na adolescência, ficava fascinado com tudo, mas não tinha fôlego para ir até o fim. Acho que o meu fascínio vinha da recomendação de Renato Russo, que, entre outras vezes, falando do livro “The Irreversible Decline of Eddie Socket”, de John Weir, disse “Nunca um livro me bateu tanto quanto este - só “A Montanha Mágica”, mas não explicou o porquê. Mas só na leitura adulta, quando a maturidade intelectual fez-me chega ao fim, é que percebi que, de fato, A Montanha Mágica era um dos livros e uma das “montanhas” da minha vida, pelos motivos que só Harold Bloom iria me ajudar a elucidar.
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Sei identificar um professor de longe. O professor é o que já esteve, por amor obsessivo, imerso em um conhecimento, fez uma experiência, adquiriu cultura e erudição na jornada e voltou para contar o que aconteceu. Ele tem que contar, senão morre. O bom professor é aquele que encontra a maneira certa de contar. Acho que tenho uma espécie de dom para identificar num sujeito essa experiência. A erudição, o domínio do tema, não tem jeito, aparece. Especialmente quando o sujeito se esquece de demonstrá-lo. Também o contrário há de acontecer. O cara que estudou só para aquele podcast, para aquela live, para aquele curso e não é íntimo dos temas - não se isolou num bunker para aprender a amar seus personagens, como Salinger - demonstra isso logo de cara. Para ser mestre é preciso alguns cabelos brancos, com todo o peso do símbolo cabelos brancos. Não tenho nada contra quem quer mostrar seus dotes retóricos, ganhar dinheiro, vender cursos. Mas ser professor é outra coisa.
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Corta para o ano 2000, numa sala de aula gelada do curso de direito ao pé da montanha em Nova Friburgo…
Quando Ernesto, meu professor de Intodução à Ciência do Direito, explicava Heráclito, dizendo - era a mais rasa das explicações - não se entra duas vezes no mesmo rio, ele deixava entrever que ele estava no meio daquela experiência. O Ernesto que começou a dar essa aula não é o mesmo Ernesto de agora, repetia. Não era um cara ali para transmitir um conteúdo, receber o seu salário e ir embora. Aliás, o sujeito vivia tão imerso na imaginação filosófica que era assaltado constantemente por distrair-se e sempre se enfiar nas mesmas ruas escuras e perigosas.
Já Miro, o de Filosofia, era um cara mais centrado e normal, bonitão, gostava de cerveja e chamava a atenção da mulherada. Mas o jeito com que explicou a busca de Tales pelo princípio, depois a paixão incontida com que falou de Sócrates, e, enfim, explicou famosa fala de Kant, “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre crescentes: o céu estrelado acima de de mim e a lei moral dentro de mim”, também me encheu de espanto venerativo por algo que eu ainda não sabia o que era. Tinha algo ali.
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Li em algum lugar algo como “a contemplação da beleza é só uma maneira decente de adiar a morte”. Não consigo lembrar onde. Deve ter sido alguém que me bloqueou nalguma rede social. Esta me parece uma concepção um tanto mundana de beleza. A beleza tem, sim, um quê de escapismo. Um belo disco de rock progressivo com músicas longuíssimas e vastas passagens instrumentais, pode ser um ótimo subterfúgio para fugir da realidade. No entanto, como um comprimido de valium, ele não adia a morte, mas nos descola, às vezes necessariamente, da realidade. E a realidade, senhoras e senhores, é que nós vamos morrer.
A contemplação da beleza, no entanto, é um ultrapassamento da morte. É um vislumbre da próxima da vida. Portanto, não adia, mas antes antecipa a morte. Traz a morte para o hoje e, misteriosamente, já a ultrapassa.
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“Sometimes exquisitely beautiful, always immaculately tasteful”, é a ótima definição de Ian Cranna para o “LC”, do Durutti Column.
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“There is a law: a completion is a new beginning. Do not concern yourself with a new beginning. Concern yourself with the quality of your completion.” (Robert Fripp, After the Rev. Peter Dewey).
Fazer o trabalho bem acabado, dizia São Josemaria. Preocupar-se com a qualidade de minha conclusão é viver com consciência vigilante meus deveres de estado. Fazer o que devo fazer. Fazer bem feitas minhas tarefas, dizia o menino Domingos Sávio. Isso deve ser o mesmo que “a cada dia basta o seu cuidado”.
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Viver é sempre tentar viver.
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Provavelmente minha concepção sobre ser professor e ser aluno são bastante românticas, de quem vive no mundo das idéias, mas, porra, isso aqui é uma espécie de tentativa no âmbito literário. Que cada um arrume sua escadinha de Jacó particular e faça os anjos descerem até seus travesseiros de pedra.
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RED HAND FILES / EDIÇÃO Nº 176 / DEZEMBRO 2021
Tenho dezesseis anos e comecei recentemente a realmente apreciar o seu trabalho. Eu estava me perguntando: que conselho você daria a seu eu de dezesseis anos e por quê?
TAYA, LOWER SACKVILLE, CANADÁ,
Cara Taya,
Esta é uma pergunta excelente que freqüentemente me fazem, e que acho muito difícil de responder.
A dificuldade é que eu sou, na verdade, o meu eu de dezesseis anos, apenas meio século mais velho. Não só isso, mas, sentado aqui à mesa da cozinha, com o sol entrando pela janela, respondendo à sua excelente pergunta, meu eu mais velho, o destino atual do meu eu mais jovem, está mais feliz.
No entanto, meu eu mais velho é protetor e instintivamente quer alertar meu eu de dezesseis anos para não cometer os erros que sei por experiência que vão lhe causar dor. Mas, veja você, esse eu mais velho e experiente também sabe que as coisas dolorosas costumam ser as que, em última análise, dão substância e significado à vida. Meu eu mais velho sabe que tropeços da vida são a maneira do destino de colocar os trilhos que vão trazer meu eu mais jovem para o lugar onde estou neste exato momento - o lugar mais feliz, onde me sento, com o sol entrando pela janela, escrevendo um resposta à sua excelente pergunta.
Tenha uma ótima vida, Taya, está tudo à sua frente.
Com amor,
Nick
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Lembro de alguns comentários de sujeitos que discordavam radicalmente de algumas postagens minhas (talvez estivessem certos) no facebook e escreviam, Fonte: vozes da minha cabeça. Esse é que deveria ter sido o nome desta newsletter, mas eu tive que parir um a fórceps, em cima da hora da publicação da primeira edição. Mas esse nome é muito melhor, afinal é o que acaba sendo escrito aqui: as vozes da minha cabeça.
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Dicas musicais da semana. Cantautores não tão conhecidos por aqui: Harry Nilsson, David Berman, Todd Rundgren; Emmit Rhodes, Dennis Wilson, Randy Newman, Chris Bell. Cliquem no links, escutem os discos e sejam felizes!
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Entendam bem: semana passada disse que nunca mais beberia aquela cerveja. Como bem disse Ernesto (ou seria Heráclito?), um homem nunca entra no mesmo rio - ainda que seja um rio de cerveja - duas vezes. Hoje comprei cerveja e vinho, em quantidade pequena, só para degustar suavemente. Chesterton disse que não é o álcool o que estraga o homem, mas o homem que estraga o álcool. Semana passada eu estraguei o álcool. Hoje é outra semana. Até semana que vem.
Sérgio, não brigue comigo mas não conhecia Burt Bacharach nessa versão isolada, como tipicamente ocorre com compositores. Não haveremos de crucificar amantes de bossa nova que não conheceçam os irmãos Valle. obrigado por me apresentar!
Também amo ser aluno, o tempo todo, mesmo quando, por profissão, tenho que ser professor.
Lecionando no Mestrado de Ensino de Física, para professores, verifiquei experimentalmente a máxima de que basta sentar na carteira para virarmos alunos. A mudança de comportamento é automática.
A missão é tornar a sala de aula, o Google Meet (esse mais difcil pois eles não estão lá!) na "montanha mágica"!
Ainda bem que o rio sempre muda!
Grato pelas reflexões....
José Huguenin