- Tem escrito todos os dias?
- Muitos dias. Ganhei mais responsabilidade aqui, então tenho lido manuscritos!
- Você é escritora, Joana, não é? Não é uma agente. Não é uma secretaria.
- Eu não sei.
- Como? Não entendi. Eu sou um pouco surdo.
- Sim, sim! Sou uma escritora.
- Então escreva! Mesmo que por quinze minutos pela manhã. Proteja esse santuário, certo? Não fique presa ao telefone, Joana. Você é uma poeta!
(Diálogo entre J.D. Salinger e uma funcionária de sua agência literária, que atendia o telefone e falava brevemente com o recluso escritor)
- Do filme “My Salinger Year”, 2020, Philippe Falardeau, Netflix)
Qualquer opção pelo bem-estar que atrapalhe os deveres de estado (que nada mais são que a porção diária do cumprimento da vocação), é um passinho em direção ao inferno.
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Um homem que foi para o inferno era atormentado continuadamente pela visão de sua esposa. A princípio, sentia saudade do toque, do cheiro, da presença. Aos poucos, foi percebendo que jamais teria nada daquilo de novo. Incessantemente, no entanto, sua esposa lhe aparecia. De tanto ter que olhá-la, a frustração de ver sem poder sentir, que ainda guardava uma ponta de sentimento, foi transformando-se em desgosto, tédio, nojo, até transbordar em puro ódio. Paulatinamente, como se no inferno houvesse tempo, ele foi odiando aquela mulher, aquela imagem, aquele corpo, aquelas memórias. Até perceber que o que ele cultivava na terra era um simulacro soberbo de amor – cheio de vícios e hedonismo – que disfarçava um egoísmo, que disfarçava um desprezo. que disfarçava o desgosto, o tédio, o nojo e o ódio. No fim das contas, era um amor que disfarçava um fundo de ódio. A estadia no inferno revelou uma verdade sobre a sua vida: ele já vivia o inferno sobre a terra.
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Será que a literatura pode abrir caminho para a catequese?
Abaixo, a pergunta e um comentário de um ex-crismando que, tendo lido por conta própria a Comedia, ficou muito impressionado com tudo o que leu sobre o inferno:
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Elvis Costello cantou: “Everyday I write the book”. Escrevemos o livro todos os dias, mesmo os que não escrevem. Cada gesto é uma frase; cada ato, um parágrafo; cada descanso, uma pausa; cada suspiro, uma reticência. Aliás, os dias já estavam misteriosamente escritos: "Cada uma de minhas ações vossos olhos viram, e todas elas foram escritas em vosso livro" (Sl 138,16).
A conta da vida só fecha quando a gente morre. Um modo de se antecipar, emular o fechamento da conta, é o exame de consciência, uma anamnese diária que podemos fazer antes de dormir. Fechando a conta do dia, antecipamos o fechamento da conta da vida. Dormir é uma antecipação do sono da morte (por isso é que muita gente tem dificuldade…). Examinar-se é “contar os nossos dias” (Sl 89,12). O exame de consciência de Davi era barra pesada: “Tu contaste as minhas aflições; põe as minhas lágrimas no teu odre; não estão elas no teu livro?” (Sl 55,8). É um acerto de contas, mas também um consolador encontro com a misericórdia: “Não tenho medo do juízo porque o juíz é meu amigo”, teria dito Santa Teresa.
Todos os dias eu escrevo o livro. Isso é uma antecipação do juízo particular.
Tenho a impressão de que Nosso Senhor irá pegar o ponto 1 de “Caminho” e dirá: “quanto mais você se aproximou disso aqui, mais rápido chegará ao Paraíso, quanto mais se afastou, mais tempo ficará no Purgatório.”
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Semana passada escrevi aqui sobre a sensação de fim de uma era quando escutei pela primeira vez “Smells like teen spirit”, no programa de rádio Novas Tendências. Já havia lido sobre o Nirvana na Bizz e corri para pedir ao meu amigo Fizinho que trouxesse um exemplar de “Nevermind” importado para mim. Ele, como sempre, conseguiu. Tenho certeza de que fui um dos primeiros a ter o disco no Brasil.
O primeiro cara que me fez pensar sobre o tempo foi Bergson. Depois vieram Thomas Mann, em A Montanha Mágica e depois Santo Agostinho nas Confissões.
“Quando experimentamos uma dor e reagimos para afastá-la, começamos a cortar o tempo em dois, em presente e em futuro. Essa reação com relação aos prazeres e às dores, quando se torna consciente é a intenção. E, segundo pensamos, é a intenção espontânea ou refletida, que engendra simultaneamente as duas noções de espaço e de tempo”(…). “O futuro, na origem, é o devendo ser, é aquilo que não tenho e de que tenho desejo ou necessidade. (...) Na origem, o curso do tempo é, portanto, apenas a distinção entre o desejado e o possuído, que se reduz ela mesma à intenção seguida de um sentimento de satisfação”(…). Esta intenção é ela mesma primeiramente força ou esforço. O futuro é o aquilo que está diante do animal e o que ele busca agarrar; o passado é aquilo que está está atrás e o que ele não mais vê.
BERGSON, Henri. “A gênese da idéia de tempo”
“Que é o tempo? Um mistério: é imaterial e – omnipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e relacionado com a existência dos corpos no espaço e com a sua marcha. Mas, deixaria de haver tempo, se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. É o tempo uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou são ambos idênticos? Não adianta prosseguir perguntando. O tempo é activo, tem carácter verbal, «traz consigo». Que é que traz consigo? A transformação. O Agora não é o Então; o Aqui é diferente do Ali; pois entre ambos se intercala o movimento. Mas, visto ser circular, e fechar-se sobre si mesmo, o movimento pelo qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade: o Então repete-se constantemente no Agora, e o Ali reaparece no Aqui. Como, por outro lado, nem sequer os mais desesperados esforços nos podem fazer imaginar um tempo finito ou um espaço limitado, decidimo-nos a configurar eternos e infinitos o tempo e o espaço, evidentemente na esperança de obter dessa forma um resultado, senão perfeito, ao menos melhor. Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e a sua redução aproximada a zero? É possível uma sucessão no eterno ou uma justaposição no infinito? São compatíveis com as hipóteses de emergência do eterno e do infinito, conceitos como os da distância, do movimento, da transformação, ou a simples existência de corpos limitados no Universo? Quantas perguntas improfícuas!” (…)
MANN, Thomas, “A Montanha Mágica”
Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras, o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam.
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei, se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo- me a declarar, sem receio de contestação que, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existia o tempo presente.
Não há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar: os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, esses três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três.
AGOSTINHO, “Confissões”
Tudo para dizer que “Nevermind” fez trinta anos de lançado dia 24 de setembro. Quando “Nevermind” foi lançado, 30 anos era muito tempo. Hoje, o que são 30 anos?
A homenagem mais bonita, como não poderia deixar de ser, veio com Ricardo Amaral e seu magnífico Discoteca Básica. Mais um excelente episódio. Belíssima e muito acertada a conclusão de André Forastieri, quando define que o Nirvana foi o último suspiro do rock como veículo do "novo" (o que não quer dizer que não continuaremos a ter novas obra-primas e que a magnificência da música não continue gerando nas almas aquele "sense of wonder" que a audição de um álbum inteiro, com letras e encarte nas mãos, e contemplando a capa nas passagens instrumentais, pode causar).
"Nevermind" talvez tenha sido o álbum mais marcante para a minha geração. Comecei a ouvir rock em 1986, quando o 'The queen is dead" e o "Dois" estavam sendo lançados. Vi o "The Joshua Tree", o "Surfer Rosa", o "Technique", o "Stone Roses"... Mas "Nevermind" foi uma apoteose, porque além de ter a mesma qualidade e magia daqueles outros álbuns, parecia condensar em si todo um movimento "indie", "alternativo", "college" que vinha se acumulando no underground e nos bastidores da música desde o início dos 80 e tinha que emergir um dia... O momento era aquele já longínquo 1991 e "Nevermind" trouxe com ele todo um movimento que explodiu para o mundo. Vivi intensamente aquilo tudo, inclusive assisti o show do Nirvana no Rio...
Infelizmente a nostalgia traz uma ponta de tristeza amarga, pois, como disse o Forastieri, e o Renato Russo já havia dito isso numa entrevista, o que a gente viu no Brasil foi um jovem gênio se autodestruindo no palco, embaixo dos holofotes e diante das câmeras (minhas memórias desse show sempre oscilam entre a euforia de ter presenciado um momento histórico, a frustração com o elemento música, e a tragédia humana que se desenvolvia diante de nossos olhos). Acabou como acabou. Mas o que fica é a música, as perfect pop songs soterradas sob toneladas de distorção e muito feedback.
E que Deus tenha misericórdia de todas as nossas almas.
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Achei engraçado um sujeito convertido ao catolicismo via perenialismo responder sobre simbolismo solar e lunar usando todos os recursos simbólicos naturais e de outras religiões, mas não dizer que o sol é Nosso Senhor e a lua, Nossa Senhora. A conversão cultural exige uma "catolização" ou um "eclesialização" ? É legal um sujeito ficar à margem quando pode adentrar a nave? É bom ficar na soleira em vez de entrar na casa ? Penso no poderoso exemplo de Simone Weil. Mas nem todo mundo, ou quase ninguém, tem esta estatura (nem tem um padre Perrin ou um Gustave Thibon por perto). É preciso evangelizar a cultura ? É preciso culturalizar os convertidos ? Ou deixar a coisa acontecer sobre(naturalmente) ? Eu penso novamente em Simone Weil, ou em outros convertidos, como os Maritain ou mesmo Edith Stein, no quanto teríamos perdido se eles fossem obrigados ou ao menos forçados a deixar rapidamente tudo o que traziam em termos de experiência e cultura para trás para se adequarem rapidamente à sacristia… São ponderações. São apenas perguntas.
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Tem hora que dou uma de (anti)filósofo metafísico. Ia perguntar para um amigo muito doido da cachola se ele acredita na existência da alma, quando ele evidentemente acredita. Ia problematizar uma coisa que estava tranqüilamente apaziguada na cabeça do sujeito. Isso pode parecer anti-filosófico, mas a gente precisa priorizar a saúde mental das pessoas (inclusive a nossa). O mundo precisa de paz.
Esse parágrafo terá uma continuação, não sei se nessa newsletter ou em alguma próxima.
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Tradução da mais recente resposta de Nick Cave em The Red Hand Files:
Li recentemente uma citação de Susie em uma revista. Penso que seja algo interessante:
“Para ser honesta, acho a palavra musa um pouco degradante. Eu realmente não tenho tempo para ser a musa de ninguém. No entanto, sou uma visitante frequente nas canções do meu marido, pareço estar sempre entrando e saindo delas. Suas canções cuidam de mim. E se devo ser uma musa, então sou a dele e ele é o meu.”
O que você acha disso?
SANDRA, LONDRES, Reino Unido
Querida Sandra,
Também nunca me senti tão confortável com o termo "musa". Acho que o problema com a palavra é que, tradicionalmente, "musa" é feminina e ocupa uma posição secundária, como fonte de inspiração para o artista masculino - uma espécie de santificação de um papel subordinado. Portanto, há algo nisso tudo que parece um tanto banalizado, como se a musa não tivesse mais nada a fazer a não ser dar energia ao artista. Dito isso, Susie é, sem dúvida, meu ponto de influência e passo a maior parte da minha vida criativa viajando de um lado para o outro ao longo do eixo de sua magnificência.
Ela tem razão ao dizer sobre minhas canções, “Eu sempre pareço estar entrando e saindo delas”, porque raramente me sento para escrever uma música sobre Susie; ao contrário, quando estou naquele limbo da criação, pode tornar-se difícil de manter minha própria perspectiva e então me pego adotando a dela - escorregando de uma voz para outra. Às vezes ouço três vozes em minhas músicas - minha voz, a de Susie e nossa voz compartilhada.
Eu amo estas suas palavras: “Suas canções cuidam de mim”. Na verdade, nem sei o que dizer sobre elas e não tenho certeza se as entendi plenamente, mas as amo mesmo assim.
Com amor,
Nick
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Achei bonito o Pedro Sette-Câmara ligar, de certo modo, o ser católico à experiência de rezar e ser atendido. Mesmo para mim que nasci católico, fui criado entre os bancos da Igreja e sou cultural, subjetiva e objetivamente católico, rezar e ser atendido é uma experiência fundante, que dá uma espécie de selo à coisa toda.
Lembro-me de certa vez estar voltando para casa vindo da Igreja e trazer na mente a figura de um menino envolvido com drogas ao qual achava que devia abordar e falar de Cristo e convidar para ir à missa. Sempre fui muito tímido, então, fazer isso era um desafio. Antes de dobrar a esquina, rezei: “Deus, se é para eu falar com este menino, que ele apareça agora nesta esquina para mim!”. Antes de dobrar a esquina eis que me aparece o menino e me cumprimenta. É óbvio que eu não tive coragem de falar nada com ele. Se Lucia Mondella prometeu e não cumpriu, Deus deve ter me perdoado. Foi uma experiência impactante.
Outra experiência se deu quando eu trabalhava no departamento pessoal de uma indústria e tínhamos os últimos minutos para fechar a folha de pagamento e gerar um imposto online e nada fazia a operação dar certo. Peguei o exemplar de “Caminho”, que ficava em cima da minha da minha mesa, coloquei a minha mão direita sobre ele e rezei: “São Josemaria, eu sei que o senhor gosta que a gente trabalhe direitinho, então dê um jeito…” Depois da enésima investida, tentei de novo, por causa de sua palavra jogarei a rede, e deu certo. Corremos para o banco e pagamos o imposto sem multa.
A experiência da oração não-atendida talvez ajude mais a amadurecer, mas a da oração atendida dá uma medida segura de que a palavra que criou tudo, continua sustentando tudo e faz o que quiser.
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O condado é bonito e gracioso, mas está podre como o mundo inteiro. Desde aquele dia.
Maravilhosas citações sobre o tempo. Fico com a de Santo Agostinho: "os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras."