Dentre os animais, somos os únicos que enterramos os mortos. É o que nos distingue. E não só enterramos, mas o fazemos com pompa e circunstância, ritos, arte e liturgia. Pensamos na morte. Celebramos a morte. Não podemos perder isso. Apesar de, blablabla, nos últimos séculos, estarmos a tentar empurrar a morte para escanteio, aí estão as circunstâncias para nos ajudar a trazê-la sempre de volta: a pandemia e a velha e boa condição humana. Meditemos: memento mori.
Me desculpe por estragar — ou salvar — o seu domingo.
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“Por que esse cara está falando arrastado, parecendo bêbado?”, perguntou Janine, escutando a participação de Magro Lima no podcast Era Uma Vez No Oeste que estava sendo transmitido via YouTube.
Dias depois veio a notícia de que a fala arrastada era decorrente de uma doença neurológica degenerativa. Magro Lima a estava tratando, mas a doença deixava suas marcas. Eu, distraído habitual, nem havia percebido o problema na fala. Mas a doença em nada atrapalhava o brilhantismo do comunicador.
Magro Lima era um daqueles caras que me fazia perguntar: por que não escolhi ser jornalista? Cada vez que o ouvia em “Era uma vez no Oeste”, saía com uma lista de livros, séries, discos e filmes. Ele, com certeza, foi uma daquelas pessoas das quais tratei, a partir da reposta de Nick Cave na newsletter de semana passada , que possuem aquele “conhecimento secreto” para transmitir.
Hoje, 22 de agosto de 2021, eu estava tirando a tradicional cochilada pós-almoço de domingo, quando acordei tocava “Beth”, do Kiss numa playlist; emendou em “I’m in you”, de Peter Frampton e logo em “Goodbye”, do Night Ranger, quando meus olhos bateram na notícia: depois de quinze dias de internação em estado grave por conta de complicações da Covid-19, Magro Lima, o Marcão, havia falecido. Um choque. Chorei como se tivesse perdido um amigo, assim como, quando da revelação da doença, fiquei pesquisando no Google para saber da gravidade da enfermidade, como se fosse alguém muito próximo. Chorei a partida de um amigo que esteve tantas vezes comigo nos últimos anos.
À tarde, o já costumeiro passeio de bicicleta com Carlos pelas ruas silenciosas do domingo cantagalense. Escolhi um episódio antigo, de 2018, de “Era uma vez no Oeste”, para ir escutando. Marcão ainda estava com a voz firme e limpa, destilando sobriedade e informação, indicando links, livros e séries, mas sobretudo dando a própria opinião com liberdade e sem o mínimo tom professoral. Jornalista de verdade.
No meio do passeio, Carlos ficou brincando com os conduítes dos freios e da marcha da bicicleta e se abaixava até quase colocar a mão no pneu dianteiro. Sem parar de pedalar, tentei ajeitá-lo na cadeirinha. Ele pegou minha mão para brincar e enfiou na boca. Eu senti seu dois dentinhos que, segundo Janine, não estavam ali pela manhã. Talvez fosse o motivo dele andar choroso e um tanto agitado nos últimos dias: o nascimento dos dentinhos. São os primeiros ritos de passagem, tão ricamente simbólicos e tão pouco celebrados na atual sociedade.
Carlos celebrando seus primeiros ritos, Magro Lima, o último. Ritos de passagem, de alguma forma são preparações simbólicas para a morte. Simbolizam vida nova, mas também perdas e superação. A cada rito, um homem, ou um bebê, que fica para trás. É uma pequena morte para uma nova vida. Como disse Clarice: morrer de muitas mortes até que a morte do corpo venha.
Viver é estar consciente disso. Viver é organizar o luto. Nada disso é possível sem vida simbólica. Ter vida simbólica é ter um repertório para examinar a própria vida, reportório esse dado pela religião, pela filosofia, pelas artes e pela literatura. É ter matéria para alimentar a imaginação e fazê-la vibrar. Vibrar com as mortes para celebrar a morte. E com a morte para celebrar a vida.
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“Padre, padre”, disse o moribundo, “preciso que o senhor me ensine a rezar hoje. Faça com que essas trevas se dissipem!”
“Sinto muito”, disse o padre, “Sinto muito, eu não sou mágico; eu não sei fazer encantamentos… Mas posso oferecer uma palavra de consolo”.
“Quero uma prece que me faça esquecer, eu quero um pouco de oração que me leve para longe; quero contar até cinco e descobrir que fui embora. Quero uma oração que me faça ultrapassar esta tempestade e acordar na calmaria, liberto deste corpo. Não aguento mais carregar este peso. Preciso abandoná-lo. Estou farto de olhar para mim. Odeio esse corpo dolorido. Quero uma oração que faça esta doença desaparecer.”
O padre olha primeiro o relógio, depois o breviário e, por fim, olha para o alto, sem nada dizer.
“Padre, reerga meu espírito. Ainda estou jovem por dentro. Sinto a vida correr em minhas veias. Por dentro estou vivo; por favor leve-me embora. Há tantas coisas a fazer; é muito cedo para minha vida acabar, para este corpo simplesmente apodrecer. Eu quero que o senhor faça uma oração para me manter vivo. Eu quero um milagre; eu não quero morrer!”
O padre faz um sinal para que o homem se acalme.
“Tenho medo de dormir e nunca mais acordar. Não irei mais existir. O nada e o vazio me assustam: temo fechar meus olhos e desaparecer… E flutuar na névoa!”
O padre tem as feições rígidas. Observa a lua pela janela, acende um cigarro e pensa em oferecer algumas palavras. Mas cala-se. Cala-se solenemente…
“Padre, por favor, me escute. Estou esvaindo… Minha mão não tem força para segurar uma xícara de café. Meus dedos estão fracos, as coisas simplesmente escorrem por eles e desaparecem…. Por dentro sou jovem e bonito. Há muitas coisas inacabadas em minha vida, mas minha própria respiração me está sendo tirada”.
Entra o médico. O padre dirige-se para o canto do quarto.
“Doutor, você não tem fé, e eu também não creio. Eu preciso de mais do que a fé pode me dar agora. Quero acreditar em milagres, não apenas em números. Eu preciso de um pouco de oração, de magia, de encantamento para me levar embora daqui. Eu quero um pouco disso tudo para superar as trevas destes dias... Eu quero…”
O médico mede a pulsação, ausculta o peito, tenta sentir a respiração. Não há mais nada a fazer. Deixa o quarto silenciosamente. O padre traça um sinal da cruz no ar e tranca a porta.
“O sol se pôs. Eu atravesso a noite estrelada. Alcanço as estrelas, a lua, a luz… Além de tudo, uma tempestade. Vôo através da tempestade. Ultrapasso a tempestade e penetro a escuridão noturna…
E acordo na calmaria de uma nova manhã.”
Livremente adaptado, inspirado e baseado na canção “Magician”, de Lou Reed.
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Todo mundo tem direito a seus momentos de fossa nesses dias cheios de som e fúria:
Eu nunca fui um Rolling Stone (Giancarlo Rufatto)
Eu nunca fui um Rolling Stone
Eu nunca soube te divertir
Eu nunca quis algo que durasse mais
Não mais que o meu próprio tempo
Eu nunca fui um Rolling Stone
Adoraria desistir
Se me deixassem voltar pra casa e assistir minha TV
(Nosso gramado ruim... )
Eu nunca fui um Rolling Stone
Eu nunca fui até o fim
Ter uma banda só me fez perder
Os melhores amigos que fiz
E ganhar um ruído no ouvido
E uma culpa que me impede de dormir
Eu nunca fui um Rolling Stone
Só visto o mesmo jeans
No dia em que nos conhecemos
Você acreditou em mim
Eu nunca fui um Rolling Stone
Eu nunca soube te divertir
Eu nunca fui um Rolling Stone
Eu nunca soube me divertir
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Outro dia, disse no Instagram que gostaria de, se envelhecesse, ser um veinho rabugento e sábio. Rabugento já sou, mas nunca amargo. Nunca amargo. A um cristão não é permitido não ter esperança. Onde há gente, há coisa boa acontecendo. As coisas boas são sementes de mostarda, jamais nos esqueçamos.
Recebi uma mensagem bonita outro dia: “Essa semana começo a catequese. Quis te contar porque você está entre as pessoas responsáveis por esse passo. Obrigada pelas reflexões inspiradoras!”
Esperança.
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Rabugice sem humor é um saco. Toda vez que eu perco a paciência e brigo com meu computador, com meus filhos ou com a realidade, acabo rindo de mim mesmo. E meus filhos riem de minha rabugice. No fundo, já sabem que quando estou no estado de reclamação aguda não devo ser levado muito a sério. Parece que isso já é tácito aqui em casa. Esse sabem bem quando devo ser levado a sério (e é justamente quando não estou irritado, nem brigando…). Temos nos dado bem assim. Não sei se sou um bom pai; eles são filhos maravilhosos.
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O disco do Lou Barlow de 2021 é melhor que o do Dinosaur Jr. de 2021. E a melhor música do disco do Dinosaur Jr., “Garden”, é cantada pelo Lou Barlow. Mas J. Mascis é que é o gênio da raça.
(Me desculpe, Suassuna, quando chamo um cara de gênio da raça só estou querendo dizer que ele é bom pra caramba).
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“We shall live again…” (“Ghost dance”, Patti Smith)
Sim, viveremos de novo, não mais aqui nesta terra. A perspectiva de que só temos uma chance é aquela sobre a qual se funda a ação cristã. A nossa vida é, em última análise, uma missão apostólica: devemos não “ser estéreis, mas úteis. E deixar rasto . E iluminar o mundo com o resplendor de nossa fé e nosso amor. E apagar, com nossa vida de apóstolo, o rasto viscoso e sujo que deixaram os semeadores impuros do ódio. E incendiar todos os caminhos da terra com o fogo de Cristo que trazemos no no coração.” ( Caminho, ponto 1, São Josemaria Escrivá)
Como fazer isso, se temos outras chances, outras vidas, outras oportunidades, até alcançar a iluminação ? Com que urgência ? Com que fogo ? Não admiro tanto a serenidade do Dalai Lama; mais me agrada o nervosismo e a emergência de um São Josemaria dando esporro no meu bispo Dom Rafael Llano Cifuentes (quando seu secretário): “Por que sua mesa está toda desarrumada, Rafa? Não sabes que devemos deixar rasto ? Dar exemplo? Não sabes que tua vida é um apostolado ? Não sabes que só temos esta vida ?”
Já temos a iluminação (que é nossa e não é, já e ainda não): o fogo de Cristo.
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Não é fácil para o homem lidar com o mistério. Nem tudo está explicado porque nem tudo é compreensível. O homem dá nome aos animais, mas não consegue domesticar tudo. Há o espanto, o absurdo, o mistério, a vida lhe escapa. Deus é infinito para fora e para o alto: transcendente. É infinito para baixo e para dentro: imanente. Nas duas dimensões, ultrapassa o homem. O tempo dá a ilusão da compreensão total, mas esconde o que é eterno.
Ajoelho e contemplo o pequeno pedaço de pão que contém a Jerusalém celeste. A imaginação se prostra. É o mais longe que a minha razão pode chegar.
Adoro Te Devote.
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Não procurem precisões filosóficas e muito menos ortodoxia teológica aqui. Isso aqui é uma tentativa - por vezes tosca - de ser literário, mesmo quando estou sendo metafisicamente sério.
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Nem todo mundo entende o fascínio que os bares exercem em algumas pessoas. Eu já amei passar hora e horas em botequins. Nick Cave entende:
Resposta 163 de The Red Hand Files, Agosto de 2021
Qual é o seu bar preferido? Podemos ir beber lá?
ALEX, GLASGOW, Reino Unido
Nick, o bar “Mercearia São Pedro”, lugar que você frequentava quando morava em São Paulo, vai fechar as portas e ser substituído por um prédio caro. O que você acha disso?
LUCAS, FLORIANÓPOLIS, BRASIL
Caros Alex e Lucas,
No início dos anos 90, morei em uma região de São Paulo chamada Vila Madalena com minha então companheira, Viviane, e nosso filho Luke. No final da nossa rua ficava o “Mercearia São Pedro”, uma mercearia que também funcionava como um bar ao ar livre. Todos os dias, por volta das 11 horas, eu pegava Luke, que tinha cerca de dois anos na época, e juntos subíamos a ladeira até o bar do Pedro. Eu sentava Luke em um banquinho, comíamos pastéis de queijo, e o dono, Pedro, conversava com Luke até clientes chegarem para o almoçar. Em seguida, mudávamos para uma mesa na calçada do lado de fora e nos sentávamos ao sol. Eu lia e escrevia, e Luke chupava sua chupeta, ou em um Chupa Chup (pirulito) )que Pedro lhe dava às escondidas. Acho que escrevi algumas letras durante esse tempo, ‘The Ship Song’ e ‘Papa Won’t Leave You, Henry’ e ‘Foi Na Cruz’, mas, principalmente eu apenas me sentei ali, fumei cigarros e bebi uma cerveja e conversei com Luke, enquanto ele chupava seu Chupa Chup e só me olhava e ouvia.
Aqueles dias no São Pedro eram simples e bons. Foram os melhores momentos. Agora, os construtores estão demolindo o bar e construindo um bloco de apartamentos de luxo em seu lugar. Entendo que assim é o mundo — as coisas vão e vêm — e sei que enfrentamos problemas mais prementes do que a demolição de um barzinho em São Paulo, mas mesmo assim um pedaço da alma da Vila Madalena se perderá quando eles demolirem aquele lugar, e também um pedaço da minha alma.
Por isso, me despeço do Merceario São Pedro, o maior bar do mundo, e agradeço ao Pedro, pela gentileza que sempre demonstrou com meu filho, Luke.
Com amor,
Nick
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Links:
Eu queria dizer que o Matheus de Castro, o Papista, é um professor sensacional. Sabe ensinar, é técnico, é erudito e estudioso e ensina com paixão e emoção. Se eu pudesse indicar cursos sobre as Sagradas Escrituras, indicaria os dele.
Discoteca Básica — o melhor podcast sobre discos, com Ricardo Alexandre — sobre o “Ten”, do Pearl Jam. Você nunca mais ouvirá esse disco da mesma maneira.
Tem disco novo de Patti Smith: um EP ,“Live at Electric Lady”, para a série homônima do Spotify em parceria com o famoso estúdio de Nova York Electric Lady (fundado por Jimi Hendrix em 1970). O repertório tem um cover de Dylan “One Too Many Mornings” e “Blame it on the sun”, de Stevie Wonder,