Em memória de Maria Lúcia Farah Noronha
O Escudo do Arcanjo Miguel — Beto Bruno
Que saudade tenho do meu pai
Porque você me deixou?
Minha mãe, mesmo longe daqui
Sempre vou estar com você
Minha vó, que falta você faz
Sinto você em todo o lugar
Meu irmão, onde você está?
Sei que vou te encontrar
Minha filha, quero te abraçar
Me perder no teu olhar
Como eu amo a minha mulher
Nunca vi ninguém amar
O escudo do Arcanjo Miguel
Vai nos proteger e salvar
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Sonhei com meu pai. Ele tentava consolar minhas primas, que relatavam as dores da doença da mãe, dizendo alguma frase clichê sobre Cristo; mas já velhinho, sem forças e também sem tanta lucidez, não conseguia terminar a sentença…
Eu, que estava na sala participando da conversa, levantei-me no meio da frase inacabada e a interrompi, dando um longo e forte abraço em papai, que acabou silenciando e descansando em meus braços. Olhei para a sua face já serenada e percebi que ele tinha a língua arroxeada. Minha irmã apareceu de repente e perguntou se poderia também receber um abraço e igualmente, notou a cor roxa de sua língua. Corri para procurar no Google se língua roxa era sintoma de alguma doença, mas acabei acordando…
Papai faleceu em 15 de maio de 2015.
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O triste que exibe sua tristeza não demonstra um sintoma da depressão, mas algo ligado à soberba que o impede de sair do centro da depressão. No fundo, ele aprecia esse jogo que lhe destrói. Gosta de lamber suas feridas em público. Apresenta-se como uma vítima espetacular.
Olhar-se intimamente como uma vítima já é ruim. Alimentar o monstro e abrir as cortinas e jactar-se de ser uma vítima é algo do qual não ouso dizer o nome.
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As doenças que aparecem no caminho para a velhice e na própria velhice são todas elas adeuses a este mundo, especialmente a perda da visão e da audição. Pense em Borges. Pense nisso.
Mas a perda da memória me parece algo excepcionalmente mais terrível do que toda e qualquer outra perda. Perder a memória é perder a identidade; perder o eu e suas circunstâncias. É perder o mundo a seu redor. Não consigo imaginar mais profunda noite escura da alma. Sem dúvida, um adeus muito misterioso a este mundo.
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Certa vez, uma catequista muito piedosa que cuidava há alguns anos de uma tia acamada, depois de uma crise na qual esta mesma tia, depois de passar já pela terceira vez por um colapso no sistema nervoso do qual a equipe médica dissera que “nenhum ser humano normal escapava”, estava recebendo alta hospitalar, me disse, entre o cansaço e o espanto:
“É um mistério. Só Deus saberá explicar um dia a permanência de titia por tanto tempo nesta terra. É um mistério.”
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Para quem é responsável, a noite, ou o reino das trevas, sempre será mais difícil do que o reino da luz. Os buscadores do prazer esperam pela noite, mas os cuidadores anseiam pelas manhãs.
Mas, lembremo-nos, há uma luz que nunca se apaga.
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Com o tempo, todas as flores curvam-se em direção ao Sol...
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Toda citação é retirada de contexto. Toda citação é uma retirada de contexto. Quem quiser saber, que corra atrás.
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Quatro turning points:
1 — Assumir-me como um escritor. Vou produzir conteúdo e trabalhar escrevendo;
2 — Parar de reclamar e reagir e tentar apenas criar;
3 — Parar de opinar politicamente na internet;
4 — Parar de rotular ideologicamente e olhar para as PESSOAS.
Isso muda a vida. Me desculpem essa seção de terapia comigo mesmo aberta ao público. Parece infantil. Mas é esse tipo de coisa que a gente fala para um terapeuta ou para um D.E. A gente fala como um amigo fala com um amigo, ou como um filho fala com um pai. No meu caso, como um marido com uma esposa. Se não for assim, desconfie. Pode ser que o analista esteja só te usando para teorizar e escrever livros.
Cada um desses pontos renderia parágrafos extensos, mas as justificativas me parecem óbvias. Não há originalidade. Você lê o caput e as justificativas se apresentam.
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Fragmentos de um discurso pedagógico sobre a atenção e a identidade
“ — Podereis — respondeu Polemarco — persuadir pessoas que não querem ouvir?
— De modo algum — disse Glauco”.
(Platão, “A República”)
Perguntei para o meu amigo Seymour Glass em um aplicativo de mensagens sobre o que ele achava do fato de alguns professores reclamarem de gastar 80% de tempo e energia buscando a atenção dos alunos. Ele me respondeu com uma reflexão que achei apropriado registrar.
São questionamentos profundos que eu também fazia. Eu digo fazia pelo fato de hoje lidar bem melhor com isso. Como professor, no início da minha carreira, eu me preocupava muito com essa questão da atenção. De tentar fazer com que o aluno prestasse atenção. Eu realmente tentava adaptar as aulas às necessidades do momento. E, no entanto, eu comecei a perceber que fazer isso é uma total perda de tempo e esforço, pelo fato desse pessoal hoje sofrer com a síndrome da mente acelerada, e se você tiver que a todo instante se esforçar para chamar a atenção, vai se submeter a uma estrutura que opera a mentalidade desses jovens a ponto de transformar a sua aula em um tik tok, ou transformar a aula em um circo, que é mais ou menos o que aqueles professores de cursinho sempre fizeram, só que isso hoje se tornou muito mais intenso. Eu, como professor, tento oferecer o contraditório. Eu sempre falei que, pedagogicamente, a gente tem que oferecer o contraditório. O que seria esse contraditório? Ora, se lá fora é oferecido funk, na escola o menino tem que ter acesso à música clássica; se lá fora é oferecido “A culpa é das estrelas”, dentro da escola ele tem que receber Machado de Assis, Goethe, Dostoievski, Tolstoi, Graciliano Ramos; se lá fora eles sofrem dessa síndrome do tik tok, aqui dentro eles têm que desenvolver a contemplação; tem que ser desenvolvido um momento de parada. E, sinceramente, essa questão da atenção em si, hoje em dia, não me parece tão importante pelo fato de , eu, como professor, tentar dar a melhor aula possível, dentro das minhas limitações de 50 minutos em turmas do ensino médio; no ensino superior, onde dou aula na PUC, é muito mais tranquilo de ser desenvolvido, as aulas são qualitativamente muito superiores às do ensino médio, mas tento dar sempre o meu melhor… E sou cínico! Eu desenvolvi um certo humor cínico, porque eu consigo despertar a atenção, não me adaptando às pessoas, mas fazendo com que elas se adaptem à minha estrutura… Se você for analisar, o que o cristianismo faz? Não se adapta totalmente à estrutura do tempo. De alguma forma, ele se adequa à certas circunstâncias, mas o essencial permanece sendo o mesmo. Então, por mais que você tente adaptar a sua linguagem, que é algo pedagogicamente natural, você, de alguma forma, tem que fazer os seus alunos se adaptarem a uma estrutura que não se submeta a essa ordem de transformação muito acelerada. Então hoje eu não me preocupo mais com essa questão de chamar a atenção.
Eu estava dizendo, o humor cínico me ajudou bastante nisso, porque eu consigo despertar a atenção do sujeito sendo muito irônico e sarcástico às vezes. A ironia, o sarcasmo e o cinismo servem para realocar a alma do sujeito; para redirecionar, para recolocar no lugar da ordem. E há um redirecionamento também interno. Então, essa virada da alma sobre a qual fala Platão, ela pode ser realizada, dentro da minha percepção, por meio da ironia socrática, por meio de um humor cínico. E aí, sim, você consegue captar a atenção do menino, mas não somente captar a atenção, você consegue despertar nele algum tipo de reflexão. Em tempos assim, esse tipo de metodologia ajuda bastante.
Se a gente for pegar a passagem de Platão na República citada por você, verá que Cristo também falava a mesma coisa: você não deve jogar as coisas sagradas aos cães nem pérolas aos porcos. Você despertar algo no seu interlocutor, mas o esforço primário para se direcionar àquilo que você está falando é dele, não seu. E a gente tenta colocar a culpa toda no nosso esforço. Como se nós fossemos responsáveis pelo fato de o aluno desinteressado não estar aprendendo. Não é assim. Eu não sou responsável pelo não-esforço do sujeito. De forma alguma. Então, hoje isso — de ter que conquistar a atenção dos alunos — não me preocupa mais. É um desgaste vazio, que no fim das contas não significa lá muita coisa, porque você pode ter atenção do aluno, mas que tipo de atenção você consegue? Você pode ter uma atenção superficial, o aluno pode gostar da sua aula porque você faz palhaçadas, o aluno pode gostar da sua aula porque você só fica no âmbito superficial das curiosidades gerais. Esse tipo de atenção eu não quero. Eu pus isso para mim. Eu não quero esse tipo de atenção. Eu prefiro um aluno ali. em meio a quarenta. que tenha sido despertado realmente para a sabedoria, para o bem, para a verdade, do que ter trinta e nove alunos achando engraçadinho a minha aula e não aprendendo porcaria nenhuma e não se modificando internamente. Aquilo que os gregos chamavam de conversão espiritual nos evangelhos também aparece como conversão espiritual. O termo usado é metanoia tanto entre os gregos, quanto nos evangelistas. Hoje não me preocupo nem um pouco mais com isso. Acho uma perda de tempo, um esforço vazio e desnecessário, e sinceramente, isso é típico de carência nossa como professores. O professor no Brasil é muito carente, ele quer ter a atenção, pois não tem atenção de quase ninguém. Então ele vai em busca dessa atenção: é mais uma carência do que uma questão pedagógica. Mesmo porque pedagogicamente falando, você tem que tentar despertar o aluno não se submetendo a esse processo de de tik tok, de síndrome da mente acelerada, de internet, de um modo geral no INSTAGRAM e etc., porque caso contrário você não vai estar oferecendo o contraditório, você vai estar simplesmente reforçando aquilo que o menino recebe lá fora.
Cristo queria atenção ? Cristo não queria atenção, ele queria é que as pessoas o imitassem. É diferente: ele nunca pediu a atenção de ninguém. Nunca chegou para quem o rodeava e falou assim, “presta atenção em mim!”. As pessoas estavam ali porque queriam estar. Ponto. Para o bem ou para o mal, mas ele não pedia atenção. Porque que não pedia ? Porque não era carente. O mestre é sempre inteiro. Ele tem que buscar ser inteiro, ele não pode ter carência nesse sentido de querer a atenção do aluno. Ele tem que despertar ali algum tipo de atenção, mas essa atenção sobre a qual eu estava falando, que é mais profunda e verdadeira, em vez de simplesmente ter atenção por ter. Então, eu acredito que essa busca pelo atenção do interlocutor é perda de tempo mesmo, porque a atenção que importa é um movimento interno do próprio sujeito que o levará ou não a ter essa real curiosidade, essa real atenção. Se for pra analisar, Cristo não queria atenção de ninguém, ele queria somente que as pessoas modificassem suas vidas, que escutassem suas palavras. Mas acho que ele não queria atenção não, muito pelo contrário. Se as pessoas não estivessem preparadas para ouvir aquilo que ele estava falando, tudo bem. E ele falou diversas vezes sobre isso: se você chegar a um lugar falar e ninguém quiser ouvir, vira as costas e tchau. Não perca seu tempo.
A imitação de Cristo faz com que nós sejamos nós mesmos e não ostentar uma aparência falsa. Essa é a questão mais mais difícil da pedagogia. Falando aqui de uma pedagogia séria e profunda, porque ensinar a materinha é fácil, faz o menino ir bem na provinha. Difícil é mudar esse sujeito de forma profunda a ponto de impactar sua personalidade ele se tornar uma pessoa madura. E maturidade aqui tem a ver com ele se tornar aquilo que ele deve ser. Ou com o que ele é atualmente, até para assumir seus limites publicamente. Tenho percebido que o que Deus gostava não somente nos profetas e nos santos não é o fato deles serem certinhos; deles se comportarem dentro da lei. Não, não é somente isso. Isso também é superficial. Muitos que estão ali, na Bíblia, não tiveram uma vida retinha, perfeitinha, muito pelo contrário: traições, assassinatos, etc. Eu acho que o que Deus mais quer do ser humano é que ele seja aquilo que ele deve ser, e se ele tiver vícios, que pelo menos tenha a capacidade de deixar claro para Deus, no sentido de tentar superá-los, porque aí entra a sinceridade… Uma sinceridade aberta mesmo, sem nenhum tipo de de falsidade. Eu acho que Deus também quer isso de nós. E esse papel, na pedagogia, é o mais difícil de ser realizado. Vamos pegar o exemplo da cola. Pode parecer algo bobo, mas quando cola, um aluno vai bem numa prova, mas mentiu para si mesmo. O que me importa é que ele está fingindo ser aquilo que não é. Aí é que o bicho pega. Eu acho que o mais difícil na pedagogia é isso: ser quem somos de fato.
(mantido o tom coloquial)
Links e dicas:
- John Lennon era um cara complicado e genial:
- Mais uma linda homenagem linda à Magro Lima:
Uma cover “bardcore" de “There is a light that never goest out”, dos Smiths, com instrumentos medievais:
- Um podcast maneiro. Os caras atiram para todos os lados e colocam várias minhocas na nossa cabeça:
- 85 anos desse gênio ontem:
- Mr. Moz retornando aos palcos:
- Nick Cave e Warren Ellis também;
- Procurem o curso de filosofia de Seymour Glass. É um professor extraordinário.
Impossível ler sem chorar algumas vezes... Obrigada por partilhar conosco.