“I am not a dog on a chain
I use my own brain
I do not read newspapers
They are troublemakers
Listen out for what’s not shown to you
And there you find the truth
For in a civilized and careful way
They’ll sculpture all your views”
(“I am not a dog on a chain”, Stephen Patrick Morrissey)
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Existem decisões definitivas. E existem decisões voláteis. As decisões voláteis são feitas em relação às escolhas fundamentais, como satélites destas. As decisões definitivas formam nossa zona de conforto (o primeiro que ouvi dizendo que para amadurecer não precisamos sair da zona de conforto, mas nos aprofundar nela, foi Ítalo Marsili). Quando tomamos estas decisões definitivas e nelas perseveramos, estamos nos enraizando na vida; descobrimos nosso lugar, nossa vocação (por exemplo, a Igreja ampara duas delas com sacramentos: ordem e matrimônio), temos um terreno seguro para caminhar e tomar as demais decisões a que somos obrigados a tomar nesta vida.
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Na psicanálise, aprender a nomear é um caminho para a cura. A literatura existe também para nos ensinar a nomear os sentimentos e as coisas. O homem, desde as origens, tem como uma de suas missões nomear os seres e as coisas. Quando se esquece e se afasta de nomear, se perde. Na comunicação não-violenta, um dos passos é aprender a nomear os sentimentos para nomear e comunicar nossas necessidades. Essas necessidades que pulsam dentro de nós são o que chamamos de vida (segundo essa abordagem da comunicação não-violenta). O exercício existencial que algumas sessões de um curso de comunicação não-violenta deixaram no meu espírito diante de diversas situações cotidianas está resumido na questão: qual necessidade minha essa pessoa ou esse evento deixou de atender que me fez sentir raiva ou reagir agressivamente?
Ao mesmo tempo, o engraçadíssimo conto de Alexandre Soares Silva, “O homem que lia seus próprios pensamentos” (há muito tempo algo escrito não me fazia rir tanto), trafega por esse tema de nomear sentimentos com uma perspectiva totalmente diversa. Com humor, leveza e uma fina ironia. Ironia que no dia seguinte transformou-se numa ponta de melancolia, quando comecei a perceber, como disse Piglia sobre os contos, a história por detrás da história, ou uma das possíveis histórias por detrás da história. Leiam Lord Ass.
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Está bem, José,
Espírito indivisível à carne,
Suave como a brisa que move o ar da tarde,
(amável, mas não condescendente),
Negro como a mortalha que faz desmaiar os instintos,
Feliz como o verbo que dança ao alvorecer da criação,
Brilhando sobre todos os alvoreceres do mundo ainda hoje:
Chuvas devastadoras na América, meninas desamparadas no Afeganistão,
As indomesticáveis nuvens de praga que não cedem…
Seu rosto brilha através das janelas da existência.
O trabalho santificado nos pequenos corredores esquecidos dos casebres.
Carlos dorme sozinho, em outro quarto, tranquilo.
Estás aqui? Me ouves falar ? Sabes a minha intenção?
Se alguém tem força e sabe o caminho para atravessar o invisível
E me conduzir através do muro espesso da indiferença,
És tu.
Onde estás agora, (alma da ) minha alma?
Assim eras tu: espírito indivisível ao corpo.
Onde tuas mãos tocavam, aí estava teu espírito,
Buscando o que só se encontra na busca.
As pegadas na neve
Deixaram marcas indeléveis.
Um batismo jamais reduzido às cinzas.
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Como posso comungar um “corpo entregue”, se não apresentar também um corpo marcado, manco, um pouco ferido e cansado, pelo amor e pelo serviço? Existe comunhão quando uma só parte se entrega? Como posso comungar um “sangue derramado”, se não dou nada, se não conheço a dor do sacrifício pelo outro, se não ofereço também um pouco de sangue?
Seu serviço doméstico, sua escrita, suas vendas, sua tradução, seu trabalho monótono no escritório e suas aulas também são “corpo entregue, sangue derramado”.
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A nada entregar meu corpo que não seja levar a vocação até às últimas consequências. Por nada derramar meu sangue que não seja viver minha vocação até o fim.
O parágrafo anterior parece dramático, né? Mas é no que afinal se transforma nossa vida depois que descobrimos nossa vocação. Se você sabe que ninguém irá escrever o que você escreve se você não o fizer, ou ao menos não o fará do jeito que você faz, com seu estilo, seus temas, respondendo às questões das quais você trata ou tenta responder, então você é um escritor. E precisa entregar o corpo e derramar o sangue para escrever (sempre soa dramático, tipo Nietzsche, “escrever com sangue”, blablabla). Apliquemos isso à todas as demais vocações e teremos um dos segredos da vida (hipérbole).
Não perder tempo e energia com o que não te ajuda a levar a cabo sua vocação e seus deveres de estado me parece uma boa dica. Todo mundo sabe disso, mas a gente quase sempre esquece. Pelo menos se você chegou até aqui, vai se lembrar disso quando for à próxima missa e ouvir o padre dizendo “meu corpo entregue por vós” e “meu sangue que será derramado por vós”. Tem tudo a ver com você e com os atos mais comezinhos que sua vocação te obriga a realizar.
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Certa vez, um distinto senhor me disse que eu não conseguiria entender a Suma Teológica se não houvesse alguém para me guiar. Eu, que sou burrinho, cheguei em casa, abri o volume e entendi tudo o que li, dentro das minhas possibilidades. Inclusive, naquele dia entendi perfeitamente o que significa o fato do homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Repeti essa explicação inúmeras vezes na catequese. Os catequizandos achavam que eu estava falando só para eles, mas eu repetia a explicação para ter a certeza de que a havia memorizado. Claro que para ler a Suma você vai precisar de mais esforço intelectual do que para entender o Catecismo. Mas você não precisa de um guia. O que você tem que fazer é só sentar e ler o livro. Nesse dia entendi isso. Ler é o próprio esforço intelectual que você faz para entender o que não sabia e que até aquele momento estava fora da sua esfera de entendimento. Quando você lê, se esforça e entende o que lê (a melhor forma de testar se entendeu o que leu é tentar explicar para os outros e ver se irão entender), você subiu um degrau na escala da inteligência. Ficou menos burro e tornou-se mais inteligente. Ficou mais gente do que antes. Se não usar os seus poderes para o mal, claro.
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Uma tradução de um trecho de Douglas Coupland:
Minha mente então vagou. Pensei nisto: como todos os dias cada um de nós vivencia alguns pequenos momentos que têm um pouco mais de ressonância do que outros — ouvimos uma palavra que fica gravada em nossa mente — ou talvez tenhamos uma pequena experiência que nos tira de nós mesmos, ainda que brevemente — compartilhamos um elevador de hotel com uma noiva vestida de véu, digamos, ou um estranho nos dá um pedaço de pão para alimentar os patos-reais na lagoa; uma pequena criança conversa conosco em um lanchonete (…).
E se fôssemos reunir esses pequenos momentos em um caderno de notas e os guardássemos por alguns meses, veríamos certas tendências emergirem de nossa compilação — surgiriam certas vozes que têm tentado falar através de nós. Perceberíamos que temos tido outra vida, uma que nem sabíamos que estava acontecendo dentro de nós. E talvez essa outra vida seja mais importante do que aquela que pensamos ser real — este mundo desajeitado do dia-a-dia de móveis, barulho e metal. Então talvez sejam esses pequenos momentos silenciosos os verdadeiros acontecimentos que formam a história de nossas vidas.
Eu divago. Eu sou humano; Estou preso no tempo. Simplesmente não consigo acreditar que a história de Laurie acabou — que nunca vai acabar — que eu nunca saberei seu final ou que nunca haverá aquele último momento que unirá tudo. Penso nela com frequência — me pergunto se ela está feliz — ou se está sofrendo. Eu me pergunto como estará seu cabelo hoje — me pergunto sobre o que ela conversa com os novos amigos que fez — se já se apaixonou novamente ou mesmo o que comeu no almoço. Ou qualquer coisa.
Quero dizer que ela é gentil. Quero dizer ela é boa. Também quero dizer a ela que Deus é bom e que a beleza nos rodeia — e que o mundo é reconhecível. Eu quero que ela venha me visitar em minha casa.
(Douglas Coupland em “Primeiro o Amor Depois o Desencanto e o Resto de Nossas Vidas” )
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Nunca exiba um troféu que você ainda não conquistou.
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Pode parecer realismo fantástico, mas hoje faz duas semanas que fui picado no céu da boca por uma abelha africana que estava escondida num bife de fígado.
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Um ateu brasileiro é capaz de tudo. Até de ouvir um discurso entusiasmante (com uma beleza falsa e sutil) recheado de heresias cristológicas gritantes de Caio Fábio e não tornar-se crente.
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Eu gostaria de ter coragem de perguntar para aquele ateu fã de Caio Fábio se depois do discurso ele havia se convertido. Acho que não. Não tive coragem.
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O problema é que Freud não acreditava em nada e Jung acreditava em coisas demais.
Ps.: não é exatamente assim, mas como escrevi isso há 10 anos…
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Como sempre, uma resposta de Nick Cave:
EDIÇÃO # 25 / FEVEREIRO 2019, The Red Hand Files
Eu sei quais são os grandes poetas, mas quais são os poetas que você mais ama?
ASTRID, LA, EUA
Durante um dos eventos ‘In Conversation’, você mencionou que olha para alguns poetas em busca de inspiração para suas composições. Quais seriam?
KATIE, PERTH, AUSTRÁLIA
Queridas Astrid e Katie,
Sempre li muita poesia. Faz parte do meu trabalho como compositor. Tento ler, no mínimo, meia hora de poesia por dia, antes de começar a escrever. Abre a imaginação, tornando a mente mais receptiva à metáfora e à abstração e serve como uma ponte da mente racional para um estranho estado de alerta, caso alguma ideia preciosa decida aparecer.
Às vezes, a leitura é uma espécie de tarefa árdua e há muitos “grandes” poetas que considero enfadonhos, inescrutáveis, prolixos e dolorosos de se ler. Lê-los pode ser más influência para o processo imaginativo.
No entanto, tenho alguns poetas que, estou considerando puramente o gosto pessoal, sempre me encantam e me enchem do simples prazer de ler. Há surpresas suficientes em sua escrita para manter a mente leve e cheia de vivacidade. Esta não é uma lista definitiva e não está em uma ordem particular. Estou apenas sentado aqui em minha mesa e olhando para a minha estante, na verdade. São poetas cuja companhia sempre aprecio.
Rae Armantrout
Thomas Hardy
Esclareço que minha lista, no caso, só contém poetas de língua inglesa, por nenhuma outra razão além de tornar a lista mais administrável.
Além desta lista, existem várias antologias de poesia que são sempre uma educação e nos dão o imenso prazer mergulhar na leitura, mais notavelmente aquelas reunidas pelo grande Jerome Rothenberg — entre elas Barbaric, Vast and Wild, Shaking the Pumpkin, A Big Jewish Book, America a Prophesy and Technicians of the Sacred.
Com muito amor,
Nick
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Compre livros pelos links. Será bom para mim. Hehe.
Olá Sérgio! Fantásticas as tempestades mentais 5! Derramar o sangue, entregar o corpo... e tudo mais à vocação! Obrigado pelas dicas de leitura!