Judee Sill era uma perfeccionista. Fascinada pelo barroco de Bach e pelas canções tristonhas de Ray Charles, chegava a levar um ano inteiro para terminar uma composição. Talvez por isso só tenha gravado dois discos. Sua canção “The kiss" é considerada o ponto alto de sua obra. Jeff Tweedy, líder e vocalista Wilco, repete aos quatro ventos que é a música mais bela que já ouviu em sua vida, uma opinião compartilhada por Andy Partridge, do XTC.
Judee Sill é mais um exemplo clássico de uma cantora que enfrentou inúmeras dificuldades na vida e só foi reconhecida pelo público quando a nova geração de artistas indie dos anos 2000 a redescobriu, resgatando-a do esquecimento. Um fenômeno semelhante ao que ocorreu com Bill Fay e diversos outros artistas, dos quais o mais exemplar talvez seja Nick Drake.
A trajetória de Judee Sill reflete a experiência de muitos jovens deprimidos e rebeldes que viveram sua juventude na era dourada do rock, sem a estrutura necessária para enfrentar a selvageria daquelas décadas tumultuadas. Pior: não tiveram estrutura para continuar vivendo depois daquela tempestade de sexo, drogas e rock’n’roll. Agravando a situação, eventos trágicos, como as mortes prematuras de seu pai e irmão, somados ao fato de sua mãe, alcoólatra, ter se casado novamente com um homem autoritário que ela nunca aceitou, levaram Judee Sill a abraçar o estilo de vida associado aos "jovens, rebeldes e drogados". Infelizmente, ela se envolveu com a deslumbrante e venenosa heroína, e há relatos de que chegou a se prostituir em troca de drogas.
Tendo sido detida, Judee Sill deixou as drogas durante o período de reclusão e aproveitou o tempo para se dedicar à composição. Demonstrando habilidades excepcionais como instrumentista, ela dominava tanto o violão quanto o piano. Após sua liberação, ela se integrou ao cenário musical e lançou seu álbum de estreia, autointitulado, em 1971.
Judee já havia sido detida aos 18 anos por roubo à mão armada e ficou em liberdade condicional após comprometer-se a viver em um internato. Lá, tornou-se organista em uma igreja, aprofundando-se no estudo do gospel tradicional americano e dedicando-se à arte. Após esse período de relativa estabilidade, sua vida sofre uma reviravolta quando sua mãe falece, levando Judee a afundar-se completamente no vício da heroína.
Sua primeira composição, “Jesus was a cross maker”, foi influenciada pelo renomado livro de Nikos Kazantzakis, "A Última Tentação de Cristo" (que também serviu de inspiração para o filme de Scorsese), explorando a tese de que Jesus, como carpinteiro, fabricava cruzes para os condenados (uma punição comum na época). A canção era, na verdade, um lamento sobre o fim de um relacionamento, mas Sill, em uma espécie de estratégia, usou essa frase “polêmica” — “Jesus era um construtor de cruzes” —como um chamariz para atrair o público. Não deu certo. Mesmo produzido por Graham Nash, um dos ícones do folk e do county-rock da época, o single não obteve sucesso, deixando Judee Sill ainda desconhecida. Nos anos 70, não alcançar sucesso e, por conseguinte, não vender discos, era considerado uma espécie de maldição. Muitos artistas talentosos desistiram de suas carreiras por causa disso. O Supertramp, por exemplo, esteve à beira do fim várias vezes devido às baixas vendas. Alice Clark, mencionada na semana passada, desistiu, amargurada, da carreira musical, pelo mesmo motivo.
O álbum de estreia é uma obra-prima de sensibilidade folk barroca, pontuado por canções country e tons acústicos. As letras, sempre permeadas por elementos espirituais e místicos, atestam a excelência de Sill como letrista. O disco recebeu elogios da crítica, e embora ela tenha sido comparada a artistas renomadas como Laura Nyro e Joni Mitchell, e tenha aberto shows para a dupla Stills & Nash, e entrado no circuito, infelizmente, não alcançou o sucesso esperado
O segundo disco é ainda mais sofisticado, incorporando cordas, metais, pedal steel guitar, além da participação de lendas como o guitarrista do Wrecking Crew, Louie Shelton e o grande mestre do pedal steel, Spooner Oldhan.
“Heart food" é um disco mais profundo e complexo, em todos os sentidos. A faixa 'The Kiss' é verdadeiramente uma obra-prima, envolta em uma aura etérea, com uma cama climática de piano e a voz carregada de experiência de Judee Sill.
“The kiss" é realmente uma obra-prima. Uma canção com uma aura etérea, uma cama climática de piano e a voz carregada de experiência de Judee Sill. “O Beijo" remete ao imaginário cristão de místicos como São Bernardo e Santa Teresa, que ecoam o Cântico dos Cânticos: “Beija-me com os beijos de sua boca…”
Mesmo diante de uma vida conturbada, Judee Sill continuava a aspirar, ainda que de forma confusa, a voos mais altos:
"Gonna wipe all your tears away"
Love risin' from the mists
Promise me this and only this
Holy breath touchin' me
Like a wind song
Sweet communion of a kiss...
"Vou enxugar todas as suas lágrimas”Amor, ascendendo das brumas
Promete-me isto e apenas isto
Sopro bendito me tocando
Como uma canção do vento
Doce comunhão de um beijo
Parece uma canção de natureza religiosa, e o uso da palavra “comunhão” por Judee Sill assume um significado profundo.
"'The Donor” é outra peça valiosa, na qual ela incorpora um coro para entoar o 'Kyrie Eleison'. É de arrepiar. Quando adolescente, eu achava que Renato Russo havia sido pioneiro ao incorporar uma parte fixa da missa — o Cordeiro — a uma canção ( “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”). Não sei se Renato conheceu a obra de Judee Still. Todavia, era um sujeito muito antenado.
Em “The Pearl", Sill continua sua busca: “I’ve been lookin for someone who sells truth by the pound….”.
"'When The Bridegroom Comes' evoca imagens apocalípticas do Espírito e da Esposa em uma melodia que é puramente gospel."
Antes do lançamento de “Heart Food”, Judee Sill embarcou em uma viagem à Inglaterra para promover o álbum, apresentando-se no programa de TV The Old Gray Whistle Test com performances memoráveis de 'The Kiss' e 'The Pearl'. Essa apresentação tornou-se lendária para seus fãs, pois, por muito tempo, foi o único registro público de Judee executando suas músicas ao vivo. Durante essa viagem, é provável que ela tenha retornado ao uso de drogas, uma luta que persistiu até a overdose fatal em 1979.
O cineasta Brian Lindstrom, que dirigiu o documentário “Lost Angel: The Genius of Judee Sill” (2022), deu um depoimento tocante sobre essa viagem de Sill à Inglaterra:
"O que me impressiona ao assistir 'The Kiss' no The Old Gray Whistle Test é aquele momento logo após o término da música, quando a artista está prestes a retornar à vida cotidiana. E, claro, o vídeo é cortado antes que possamos testemunhar essa transição. Em muitos aspectos, acredito que nosso filme está explorando esse momento específico. O que acontece depois de experiências transcendentais, quando a musa está presente e você atinge alturas extraordinárias? Como é viver a vida diária, lidando com desafios, mantendo a integridade e enfrentando todas as outras complexidades, especialmente quando a música não está mais tão presente?"
Conforme Rudger Safranski descreve, para Nietzsche, filosofar era pensar no que fazer depois que a música acaba — o drama existencial de decidir o próximo passo. Esse foi o drama profundo da vida de Judee Sill, um dilema capturado de maneira perspicaz por Lindstrom na apresentação marcante no The Old Gray Whistle Test.
Muitos artistas não suportam o fardo do sucesso. Judee Sill não suportou o peso do fracasso. Fracassou tanto na música, quanto na vida. Felizmente, ela nos presenteou com uma trilha sonora que faz com que a sua vida ecoe até hoje ente nós.
Ouça “The kiss”. E acenda uma vela para Judee Sill hoje.
Linda Perhacs é outra dessas folk singers de um álbum só que foram descobertas pelas gerações posteriores e voltaram a gravar (outra: Vashti Bunyan). Diferentemente de Sill, Linda Perhacs parecia uma jovem tranquila, que se formou em higiene dental, descobriu a música e gravou o assombrosamente belo “Parallelograms" enquanto exercia sua profissão.
Um paciente seu, o compositor e ganhador do Oscar ,Leonard Rosenman (compôs as trilhas de “Juventude Transviada" e “Barry Lyndon") , ouviu umas demos que ela havia gravado, ficou impressionado com a qualidade das composições e fez a proposta da produção de um álbum.
Linds Perhacs desmistifica o artista folk maldito e drogado. Neste sentido, ela é a antítese de Judee Sill. Quem ouve “Parallelograms”, pode jurar que está diante de um disco gravado por uma doidona, mas tudo é apenas fruto da alma criativa de Linda Perhacs, uma jovem higienista dental que fez uma pausa na carreira para gravar um disco. A mágica da música transcende esse mundinho pequeno das drogas e da falsa mística do comportamento marginal. A música está ligada às esferas e é emprestada aos homens para que possam sonhar com o que está além do céu azul.
Não que o disco de estreia de Perhacs não seja riponga. É. Foi criado no coração da hippielândia, Topanga Canyon, em Los Angeles (onde, aliás, Judee Sill tirou a fotografia para a capa de seu primeiro álbum), e muito influenciado pela revolução cultural. Perhacs nunca usou drogas ilegais, mas deixou-se absorver pela fumaça venenosa dos anos 60 (que Joan Didion dissecou, sem interpretações e julgamentos, em seu magnífico ensaio/relato “Rastejando até Belém”). “Parallelograms” é uma pérola rara e delicada. Abre com a misteriosa e belíssima “Chimacum rain", que evoca a presença da chuva que cai, lavando o silêncio da floresta e a sugestão do toque suave de um amante. A sonoridade de Perhacs é muitas vezes classificada como folk psicodélico e aqui dá para sentir o clima lisérgico envolvendo a canção. A voz de Linda é algo de magnífico. Envolvida por xilofones e wind chimes, dá a melhor carta de apresentação aos ouvintes. Não sei se Elisabeth Fraser, dos Cocteau Twins bebeu nesta fonte, mas eu poderia jurar que sim.
O álbum é extraordinário de ponta a ponta, mas eu gostaria de destacar a beleza sombria de “Hey, who really cares”, que é gêmea das pequenezas de Vashti Bunyan e o auge do disco, a canção homônima, “Parallelograms”. Ninguém poderia descrevê-la melhor que Andy Beta, em sua resenha para a Pitchfork:
“Talvez você possa fantasiar que Joni Mitchell ensina pintura e cerâmica em sua escola, ou que Chan Marshall (Cat Power) resmunga sobre os poetas do Apocalipse durante suas aulas de inglês, mas Perhacs ensinando geometria é mais tantricamente atraente para uma professora. Apenas escutar “Quadrehederal / Tetrahedral / mono-cyclo-cyber-cilia” é sentir a dor de não estar presente quando ela e o produtor Leonard Rosenman assentaram com presteza as ondas de seu canto celestial em círculos concêntricos sobre um tema criado por um toque cíclico de violão, gerando um efeito cumulativo que revela uma dimensão dificilmente já alcançada em qualquer outro lugar no mundo da música. Mais perto das Vozes Misteriosas da Bulgária ou “auto-coro” (formado por suas “próprias vozes” ) de Tim Buckley do que de Melanie ou Linda Ronstadt, Perhacs nos joga em nuvens flutuantes de sinos reverberantes, ecos de flauta, climas fantasmagóricos e sua voz transcendente. Que uma assistente de dentista no norte da Califórnia pudesse transmitir a experiência psicodélica por meio do uso da tecnologia de efeitos experimentais com mais eficácia do que o Pink Floyd de Syd Barret, o Fifty-Foot Hose, ou as iluminações eletroacústicas de Buffy Saint-Marie, é, com tudo o que significa o clichê do uso da palavra, alucinante.
Quando “Parallelograms” foi finalizado, todo o staff que trabalhou na produção, era unânime: estavam diante uma obra-prima. Mas era música, sem apelo comercial ou fórmulas fáceis para o sucesso. Perhacs não iria deixar sua rotina por nada além da música. E era rígida consigo: “Eu mesma só aguentei ouvir o disco uma vez. Em seguida, joguei fora minha própria cópia”. A gravadora não divulgou, nem distribuiu. Linda Perhacs continuou na obscuridade até que “Parallelograms” fosse redescoberto por artistas como Julian Holten, Devendra Banhart e pela banda de death metal progressivo Opeth, já no século seguinte.
Perhacs voltou a gravar em 2014, mas isso já é assunto para outra conversa.
Se você acender uma vela para Judee Sill, faça também uma oração por Linda Perhacs, para que ela saiba que além do chamado do rio há um Outro que chama.
Eis a resposta que um leitor muito especial, Leonardo Pataca, escreveu depois da newsletter da semana passada:
Após ler as "Tempestades mentais" publicadas hoje pelo Sergio de Souza, resolvi acatar a proposta dele e citar dez discos com um climão de tristeza. Não estão em ordem de preferência. Artistas de gêneros musicais e gerações distintas, mas todas as obras com uma coisa em comum: a capacidade de pôr para baixo o ouvinte, ainda que de maneira bonita. Segue a melancólica lista.
1) Jackson Browne, disco "Jackson Browne", de 1972. Destaque para a canção "Song for Adam", em que Browne relata o suicídio cometido por um amigo;
2) Eric Clapton, disco "461 Ocean Boulevard", de 1974. Destaque para a canção "Give Me Strength", em que Clapton pede, a Deus, forças para continuar lutando contra o vício em heroína;
3) Joni Mitchell, disco "Blue", de 1971. Destaque para a canção "The Last Time I Saw Richard", em que Mitchell canta o destino devastador de uma pessoa que sofreu uma desilusão amorosa;
4) Eric Andersen, disco "Blue River, de 1972. Destaque para a canção "Faithful", em que Andersen confessa a sua própria infidelidade, e de como o ato também o prejudicou;
5) Nick Drake, disco "Pink Moon", de 1972. Destaque para a canção "Which Will", em que Drake mostra-se perdido sobre qual rumo seguir (ele, infelizmente, cometeria suicídio pouco tempo depois, aos 26 anos de idade);
6) Jackson C. Frank, disco "Jackson C. Frank", de 1965. Destaque para a canção "Blues Run the Game", em que Frank canta o fato de que, não importa o aonde ele vá ou o que faça, a tristeza sempre o acompanha (Frank, cedo na vida, foi diagnosticado com esquizofrenia e depressão severa, o que o impediu de manter a carreira musical, morrendo no ostracismo e na miséria);
7) Nick Cave, disco "The Boatman's Call", de 1997. Destaque para a canção "People Ain't No Good", em que Cave parece, digamos, um tanto desiludido com o andar dessa carruagem chamada humanidade;
8) Bruce Springsteen, disco "Nebraska", de 1982. Destaque para a canção "Used Cars", em que Springsteen canta sobre a infância de pobreza que viveu no subúrbio sujo da cidade;
9) Cat Power, disco "Moon Pix", de 1998. Destaque para a canção "He Turns Down", em que Chan Marshall, o verdadeiro nome da cantora/compositora, trata (acho) da questão da rejeição;
10) R.E.M., disco "Automatic for the People", de 1992. Destaque para a canção "Nightswimming", em que Michael Stipe, vocalista da banda e compositor, canta sobre as merdas que acontecem em nosso passado e que insistem em nos perseguir no presente.