Tem gente que diz tanta besteira quando fala, mas realiza obras de caridade formidáveis. Sobre esses é melhor calar-se. Mas insisto em lembrar a frase de Romário e complementá-la: calado é um poeta, agindo é um santo. É um mistério essa distância entre o discurso e a ação, que acaba indo na direção contrária à hipocrisia: falar como bom moço e agir como um canalha. Sobre a má palavra, relembro as palavras de Lucia Mondela: “Deus perdoa tanto por um gesto de misericórdia!”. Deus há de perdoar o que sai da boca pelo trabalho que sai das mãos.
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As tempestades mentais sobre quase tudo são sempre sobre Deus. É um título mentiroso. Meu tema é sempre Deus e seu entorno, que é tudo o que existe. Então, acabo estando certo.
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Acabei de promover meu primeiro encontro catequético online. Achei muito estranho que os jovens prefiram não mostrar o rosto. Até eu, que sou tímido e detesto aparecer em vídeo, não consigo estabelecer uma comunicação sem mostrar o rosto. Não mostrar o rosto é perder um poder de expressão riquíssimo (Lévinas e sua filosofia do rosto: “O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto” ). Acho que será parte essencial da catequese no futuro voltar a humanizar as relações, ou humanizar as novas relações (virtuais), ensinando-lhes a não ter medo de mostrar o rosto. Isso, de não mostrar o rosto, é próprio da geração virtual. Fernando Naporano, “o adorável carimbador do rock’n’roll”, crítico, escritor e músico (na única banda estilo C86, regressive rock ou anorak, Maria Angélica Não Mora Mais Aqui), mostra, nesse podcast, que é importante ter uma vida real e mostrar o rosto. Eu acabei dando a catequese para um monte de fotos de perfis. Aonde estavam as personas?
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Deixar que a morte nos visite nas pequenas coisas do cotidiano. Não substituir o peixinho que morreu sem que as crianças saibam, para que elas não sejam visitadas pela morte. Foi mais ou menos isso que Maria Cristina Guarnieri disse no Podcast “A Irmã Morte”, de Roberto Miguel, no quinto episódio da segunda temporada. Lembrei-me de uma meditação que fiz em 2011, quando o peixinho que a gente tinha morreu, numa véspera de Natal:
***O peixinho morreu na manhã de Natal
Não adianta esconder das crianças
Peixinhos morrem em manhãs de Natal
A morte chega quando é menos esperada
O peixinho está se decompondo no aquário
Ninguém quer dispensá-lo na privada
Talvez um funeral com uma íntima liturgia
Para deixar que a morte nos visite
nas pequenas coisas do cotidiano
Essa é a minha meditação de Natal
Para que jamais as crianças esqueçam
Que a vida nasce para morrer
E a morte morre para viver
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A religião é uma maravilhosa escola para a morte justamente porque mira para além desta vida. O sentido da história encontra-se na meta-história. E o sentido da história global nos é dado pela história local. Somos chamados a nos conectar com tudo isso através do Verbo.
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Natalia Ginzburg disse, em “As pequenas virtudes”, que “não nos é dado escolher sermos felizes ou infelizes. Mas é preciso escolher não ser diabolicamente infeliz.”
Mas Camus, citado por Howard Mumma, em “Albert Camus e o Teólogo”, disse que “o sofrimento é dado. Não podemos escapar à sua existência. É como lidamos com o sofrimento que define o que somos.”
É preciso escolher.
Natalia Ginzburg é uma grande escritura, uma das maiores. Mas às vezes penso que não é grande filósofa.
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Minha filha de 13 anos pegou “Vidas Secas” e leu. Perguntei se tinha entendido, respondeu que se não tivesse entendido, teria parado de ler.
E tem gente que acha que precisa de curso para ler autores clássicos. Pedro Sette-Câmara tem dito que o brasileiro sente timidez diante das grandes obras.
A receita para vencer a timidez é simples: pegue o livro, os autores e leia.
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Detesto linguagem espertinha em escritor. Os escritores que mais amo são “sim, sim, não, não”. Ou diz o que tem que dizer — mesmo com símbolos, metáforas e recursos— e o leitor entende ou é um dissimulado que pensa, no futuro, em desdizer ou fingir que não disse o que disse. Eu conheço de cara esse tipo de texto. É a coisa menos bernanosiana ou chestertoniana que existe.
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Um mini-conto ilustrado pelo meu filho, João de Souza:
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Para terminar, a tradução de um trecho do livro “From the Underground Church do Freedon”, de Tomás Halík, onde ele explica algo que pode ser aplicado à “escrita de si” ou à autoficção:
“Você está escrevendo sobre si mesmo novamente?”. “Você acha que as pessoas têm tempo e disposição para ler sobre sua vida?,” perguntou hoje minha colega Scarlett em meu escritório, enquanto dava uma olhada casual no manuscrito que eu acabara de entregar para seus comentários críticos. Scarlett está ao meu lado há quarenta anos, nos momentos bons e ruins. Ela é a primeira pessoa a ler meus textos e uma crítica severa de tudo que digo, escrevo e faço. Ninguém na terra é capaz de me perturbar do jeito que ela faz; ninguém na terra me beneficiou e ajudou tanto quanto ela. Quando vários de meus amigos foram nomeados para cargos importantes depois de 1989, pude ver que eles precisavam desesperadamente de alguém que lhes desse um feedback sistemático, em vez dos bajuladores e puxa-sacos que os rodeavam. Devo espacialmente a Scarlett meu lado maduro e bem-humorado. A Bíblia diz que uma mulher forte vale mais do que rubis; requer muita firmeza, paciência e um furacão de incansável energia para permanecer ao meu lado. O que devo responder? Estou escrevendo sobre mim, mas também sobre meio século de história de um país no coração da Europa e, particularmente, sobre a história da Igreja Católica Tcheca, que foi duramente provada. Não sou historiador, com certeza, e meu testemunho será "subjetivo". De que outra forma o poderia fazer ? Naturalmente, também estou escrevendo minha história para os leitores dos meus livros e para aqueles que assistem às minhas palestras. Quando leio um livro ou ouço a palestra de alguém, frequentemente me pergunto: como essa pessoa chegou aos pontos de vista que expôs? Eles os derivaram principalmente de livros, de seu estudo da literatura especializada, ou suas opiniões também são apoiadas pela riqueza de sua própria experiência pessoal? Sua visão de mundo passou por provações e crises? Tiveram às vezes que revisar ou reavaliar radicalmente seus pontos de vista ? Quando conheço a história de vida de um autor e como sua personalidade e opiniões evoluíram, seus escritos se tornam mais vívidos, significativos, confiáveis e imediatos. Meus leitores e ouvintes também têm o direito de conhecer o contexto interno da minha escrita, bem como o externo, não apenas as circunstâncias históricas e o contexto social e cultural, mas também a minha história de vida e o drama da busca espiritual e do processo de maturidade; caso desejem, encontrarão aqui a chave para uma compreensão mais profunda do que tento transmitir em meus livros e palestras. Antes de descrever o que se vê, deve-se declarar onde se encontra, qual é o seu ponto de vista e por que o adotou.
"Você está escrevendo sobre si mesmo " Eu também poderia responder que estou escrevendo sobre Deus. É possível falar de Deus e não investir a própria vida nessa conta? Se eu falasse de Deus “objetivamente”, sem me envolver nisso, estaria falando de uma pálida abstração. Esse "Deus exterior" não seria apenas um ídolo? Por outro lado, é possível falar sobre si mesmo e não dizer nada sobre Deus? Se eu falasse de mim mesmo e não dissesse nada sobre Deus, poderia atribuir a mim mesmo o que é dele e ficar preso por toda a eternidade na armadilha do egocentrismo ou me afogar na superficialidade narcisista. Quando Narciso se inclina sobre a superfície do lago, vê apenas a si mesmo, seus olhos permanecem fixos na superfície e em sua própria imagem refletida. Essa superficialidade acaba lhe sendo fatal . O olhar do crente deve penetrar mais fundo. Só então a profundidade não se tornará uma armadilha maligna.
Duas realidades cruciais para nossa vida são invisíveis: nosso eu e Deus. Vemos muitas manifestações que podem ser atribuídas a nós mesmos, e outras a Deus, mas nem nosso eu interior nem Deus se apresentam a nós como coisas que possamos apontar e que possamos localizar com certeza. Os místicos - e particularmente meu amado Meister Eckhart - afirmaram uma coisa muito profunda que também é extremamente perigosa: Deus e eu somos um e o mesmo.
Esta posição pode, de fato, ser perigosa. Quando, do nosso ponto de vista, Deus se confunde com nosso eu, no sentido de que acabamos o substituindo pelo nosso eu, então perdemos a nossa alma. Quando separamos rigorosamente os dois e começamos a considerar Deus como algo inteiramente exterior e separado da nossa alma, perdemos o Deus vivo, e tudo o que nos resta é um ídolo, uma coisa; apenas “uma coisa entre coisas”. A tarefa permanente da teologia é apontar para essa dinâmica de imanência e transcendência. Talvez pudéssemos falar da ligação entre o nosso eu e Deus nos termos usados pelo Concílio de Calcedónia para descrever a relação entre a humanidade e a divindade de Cristo: são inseparáveis e, no entanto, não se misturamos. Se eu levar a sério o mistério da Encarnação — o coração da fé cristã — e o compreender não como uma ocorrência casual no passado, mas como a chave para compreender todo o drama da história da salvação, a história da relação entre Deus e o povo, então não posso pensar na humanidade e na divindade separadamente. Quando digo “eu”, então também digo “Deus”, porque o ser humano sem Deus não é inteiro.
É apenas em relação a Deus que podemos começar a sentir que o nosso eu está estruturado de forma diferente do que parece quando visto com o olhar superficial e ingênuo da vida quotidiana. Para além do nosso “ego” temos por vezes um vislumbre de algo pelo qual os místicos e a psicologia profunda moderna se esforçam por encontrar uma expressão adequada — “o homem interior”, o “eu profundo”, das Selbst. Meister Eckhart costumava falar sobre o “Deus interior”, o “Deus além de Deus”; alguns teólogos modernos e pós-modernos (e a-theists) falam sobre “Deus além do Deus do teísmo”. Talvez só quando chegarmos a perceber a compreensão ingênua e objetivada de Deus e a compreensão igualmente ingênua do “eu” como ilusões, é que seremos capazes de compreender a declaração de Eckhart: “Deus e eu somos um”; compreenderemos que não é uma autodeificação blasfema nem uma impiedade encoberta. “O olho com que eu vejo Deus é o mesmo olho com que Deus me vê”, escreveu Meister Eckhart. E encontramos algo semelhante nos escritos de Santo Agostinho: “O amor com que amas a Deus e a ânsia com que O procuras, são o amor e a ânsia com que Deus te procura e te ama”.
Agostinho escreveu inúmeros tratados sobre Deus, mas o mais inspirador para aqueles que ainda ousam falar de Deus é a sua ousadia em apresentar francamente a sua própria história de vida e dizer ao leitor: “Procura, amigo.” A solução para o quebra-cabeças, a chave para o significado desta história, é Deus. Só se encontrará a Deus conhecendo-se a si próprio; só se encontrará a si, procurando a Deus. Agostinho inventou assim um novo género literário e uma nova forma de refletir sobre a fé: a autobiografia como estrutura da teologia filosófica.
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Participarei hoje de uma live com o poeta João Filho sobre evangelização pela via da cultura. Será transmitida aqui.
Até domingo que vem.