Tempestades mentais sobre quase tudo 3
O espanto artístico como conhecimento secreto (só pra ter um subtítulo)
Hoje a newsletter, que, gostei da definição de João Filho, é um diário íntimo, deve ser mais curta.
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Tenho passeado de bicicleta com meu filho mais novo. Utilizo a bicicleta como veículo há mais de trinta anos. Mas passear de bicicleta é diferente. É a melhor forma de meditação. É a vida examinada sobre duas rodas. Ao mesmo tempo, é puro mindfullness, você não faz nada, apenas deixa o tempo passar, o vento gelado acariciar seu rosto e eriçar pela primeira vez os fiozinhos de cabelo de seu filho quase careca, você deixa o tempo ser o que é, pura fluência, e você se deixa envelhecer serena e tranquilamente sobre duas rodas. Sim, porque envelhecer é a passagem do tempo sobre o seu corpo e quase nunca a gente toma consciência disso. Então, talvez descer um declive a uma velocidade não muito alta — porque o bebê só tem oito meses (mas está durinho o sem-vergonha) — pode ser uma oportunidade única para tornar-se consciente do processo de envelhecimento que ocorre aqui e agora.
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“- Por favor, qual é o seu nome? — perguntou ao gato. — Olha, sou Coraline. Tá? O gato bocejou lenta e cuidadosamente, revelando uma boca e uma língua de um rosa impressionante. — Gatos não têm nomes — disse.- Não? — perguntou Coraline.- Não — respondeu o gato. — Agora, vocês pessoas tem nomes. Isso é porque vocês não sabem quem vocês são. Nós sabemos quem somos, portanto não precisamos de nomes.”
(“Coraline e o mundo secreto”, Neil Gaiman)
Durante muito tempo ensinei para os meus catequizandos que a diferença entre nós e os animais é que nós captamos o ser e sabemos quem somos e eles não. Neste trecho de “ Coraline”, Gaiman coloca na boca do gato justamente o contrário. E eu concordo, em termos, com ele. O gato é programado para ser um gato. Seus instintos são como que uma programação para que ele faça tudo como um gato e viva sua “gatoidade” na plenitude. O gato “sabe” que é um gato, mas ele não sabe quem é de fato. O homem, feito à imagem e semelhança de Deus, inteligente, dotado de vontade e livre, sabe que é homem, que participa de alguma forma do ser, mas também sabe que nisso há limites, por isso vive à procura de si mesmo e de Deus; vive à procura de Deus para encontrar a si mesmo. Nesse sentido, é justamente porque sabe que é humano que o homem não sabe quem é e que precisa procurar.
O poeta português Daniel Faria reconhecia Cristo como o “lugar mal situado”. Tendo-se feito homem, experimenta o deslocamento mais radical de nossa espécie: não tem onde recostar a cabeça, enquanto as raposas têm suas tocas e os pássaros, seus ninhos. Ou seja, Cristo experimenta a precariedade da vida humana, sua carência e contingência. Mesmo sendo a Segunda Pessoa quis experimentar o desencaixe do homem neste mundo: o homem não sabe quem é, não tem casa. As raposas, os pássaros e, claro, os gatos, têm casas: sabem quem são.
O desenho a seguir é de Clara, minha primogênita.
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A bondade divina está apontada para nossas cicatrizes. Não há uma só descida na escala do ser para a qual não esteja prevista uma solução por parte da providência. Para cada ferida, um bálsamo; para cada queda, um apoio. Nós temos todos os motivos para não ter medo da vida e confiar plenamente. Somos feitos para caminhar sobre as águas. Nossa tarefa neste mundo talvez seja crescer cotidianamente nesse sentido: estar atento aos nossos movimentos interiores e colocá-los na perspectiva da confiança. A vida de fé consiste exatamente neste treino. Este mundo é pedagógico.
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Nick Cave, em The Red Hand Files:
EDIÇÃO #26 / FEVEREIRO 2019
Tenho 10 anos e tenho escutado e sido envolvido por sua música desde que me consigo lembrar. Assisti-o em Hobart em Janeiro de 2017 e estarei lá novamente para vê-lo em Janeiro de 2019. Nenhum dos meus amigos ouve nada cool, interessante ou bonito. Como é que conviver com sua música desde tão cedo na minha vida pode me afetar? Você teria algum conselho para mim? Obrigado.
“Caro Ptolomeu,
Acho que posso já ter respondido a sua pergunta no “In Conversations” (turnê na qual o cantor australiano tocava suas canções , conversava com o público e respondia questões) em Hobart - se você é o garotinho loiro que estava sentada no lado direito do corredor. Não me lembro exatamente o que respondi, mas pensei mais sobre a pergunta depois do show, e me lembro de desejar ter respondido melhor.
Talvez, isso seja o que eu deveria ter dito. Ouvir a música dos Bad Seeds na sua idade é como ter um conhecimento secreto. Quando eu tinha mais ou menos a sua idade, também tinha um conhecimento secreto. Meu irmão mais velho, Tim, costumava ouvir muita música bem estranha e obscura e passou esse conhecimento para mim. Naquela época eu morava em uma cidade rural em Victoria e me parecia que ninguém da minha idade ouvia o tipo de música que meu irmão tocava para mim. Pelo que pude perceber, todos ouvia um monte de merda. Era como se eu carregasse um segredo dentro de mim, um conhecimento especial sobre o mundo que meus amigos não tinham. Era um poder secreto. Eu carreguei esse poder secreto comigo durante todos os meus anos de criança, até que fui para uma escola em Melbourne, onde conheci três ou quatro outras pessoas que também tinham esse conhecimento especial - esse poder secreto. Essas pessoas se tornaram minhas melhores amigas, formamos uma banda e tentamos, do nosso jeito, levar esse conhecimento e transmiti-lo ao mundo.
Esse conhecimento secreto que você tem é uma força que só vive dentro de certas pessoas. É uma força que o inspirará a fazer coisas maravilhosas - como escrever histórias, desenhar ou construir foguetes que voem para Marte. Isso lhe dará coragem para enfrentar qualquer coisa que o mundo possa colocar à sua frente. É um poder selvagem que pode ter um valor incalculável para o mundo. Seu nome, Ptolomeu, é o nome de um guerreiro. Um menino cheio de inspiração com o nome de um guerreiro! O mundo está esperando por você. Arrebenta, garoto.
Com amor,
Nick.”
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Literatura não salva… Mas tem uns contos da Flannery que nos fazem gemer baixinho…
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Tive uma professora que me emprestou o romance “Vidas sem rumo”, de Susan E. Hinton. Eu devia ter, sei lá, 10 anos. Hinton escreveu o livro aos 17 anos e tornou-se uma das escritoras favoritas dos adolescentes ao redor do mundo. Fiquei maravilhado. Depois, minha professora, que já era uma daquelas que me fizeram ficar apaixonado desde a pré-escola, levou-me à sua casa para ver, junto com seu filho, o filme de Coppola baseado no livro. Naquela época, poucas pessoas tinham vídeocassete na minha cidade. Nós, mais pobres, tínhamos que ir à casa dos poucos possuidores dos aparelhinhos para assistir aos filmes. Eu já havia sido apresentado ao espanto artístico, e ficado por algumas semanas atordoado espiritualmente com “E.T., o extraterrestre”, assistido logo que estreou no Brasil, em 1982, na primeira vez em que pisei numa sala de cinema. Não sei mensurar o impacto que esse filme me causou, mas foi a partir dele que comecei a perceber que tudo em minha vida a partir de então passaria pela arte.
Fiquei novamente atordoado com o livro de Hinton e mais ainda com o filme de Coppola. Fiquei boquiaberto com a fita, assistindo até letreiro ao final do filme, querendo decorar os nomes dos atores, do diretor ( pensei que poderia ser Spielberg, porque achei que o filme tinha a mesma magia — era a palavra que me assaltou na época — que havia me atingido no filme do extraterrestre), das músicas que compunham a trilha sonora… A partir deste filme, fui assistir aos outros filmes baseados nos livros de Susan E. Hinton, e aí vieram os Smiths, e Morrissey era fã de James Dean, e assisti “Juventude Transviada”, e fui descobrindo a origem de tudo, do sentimento trágico da vida, que “Vidas amargas” (baseado em “A Leste do Eden”, de Steinbeck, um dos favoritos de Danton Favaretto) era a história de Caim e Abel e que a sombra da Bíblia pairava sobre tudo…
Foi mais ou menos assim que comecei a perceber que “a cultura começa comigo, aqui, agora, já” (Pedro Sette-Câmara). Foi assim que comecei a perceber também que eu tinha nas mãos um “conhecimento secreto” que precisava compartilhar com meus amigos. Foi mais ou menos por aí que começou a história dO Camponês.
Tudo isso para dizer também: o que um professor que vê pode fazer por nós, não é?
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