Seu pai alugou o apartamento, Ana?
- Na Alameda, mãe. Bem pequeno, mas está mobiliado.
- Já foi lá?
- Vamos comigo ?
O ônibus balançava até embrulhar o estômago. O subúrbio era mais arborizado, Chegamos rápido às ruas estreitas. O porteiro parou de varrer para nos levar até o 607. Na porta do elevador, escutamos o ruído de um impacto.
- O que foi, D. Áurea? - perguntou o porteiro, segurando o elevador.
- A Sra. do 808 pulou da janela. Está espatifada na calçada. Há sangue por todo o lado…
Lá fora, já se formavam grupinhos. Ana e sua mãe continuavam esperando na porta do elevador, enquanto o porteiro foi ver o que podia fazer.
- Já é o terceiro suicídio só este ano… - demonstrando desânimo - Deixa eu ligar…
- Já ligaram para a polícia.
O porteiro também morava no prédio. Subiu os andares fazendo as vezes do ascensorista e mostrando o apartamento para Ana e sua mãe.
Era bem pequeno e antigo. Cheirava mofo e poeira, mas estava mobiliado e pronto para se morar. Ana colocou os pés para cima do sofá, acendeu um cigarro, enquanto a mãe abria as janelas. Lá embaixo, ainda havia barulho de sirene e um plástico preto já encobria o corpo. Mesmo de longe, se via o vermelho escorrendo e empoçando no meio-fio.
- Querem um café? Vai dar tempo de fazer o almoço?
O porteiro era também uma espécie de zelador e tinha o costume de entrar sem bater.
- Não, obrigado, e trancou a porta assim que ele virou as costas.
***
- Mas seu pai é mesmo um filho da puta. Demorou tanto tempo para alugar essa porcaria…
- Não fale assim. Se ele souber que a senhora está…
- E o que que tem? Vou ser proibida de viver com minha filha?
- A senhora está pensando em morar aqui?
- Olha, não se preocupe, Ana, quando você menos esperar, estarei juntando meus paninhos de bunda…
Não havia mais tardes vermelhas. Todos os dias eram quentes e estorricantes; começavam azuis e iam ficando cinzentos à medida em que entardecia. Manhã seguinte, sol, céu azul e calor.
***
- As pessoas realmente não conversam mais umas com as outras. Entra e saem caladas do elevador, não frequentam as áreas comuns, nem as empregadas descem mais com as crianças para o playground…
- Qual é o número do seu apartamento ? Dá próxima vez você pode bater antes de entrar?
- Sua mãe já foi embora?
- Faz dois dias. O Dário chega amanhã.
***
- Dário, trouxe o cigarro que te pedi?
- Está na estante, junto com minha carteira.
- Foi fácil chegar ? Você veio rápido. Mal acabou de ligar, já estava aqui.
- Quer uma cerveja?
- Já conhecia a Alameda?
- Ou prefere um vinho?
- Você já conhecia a Alameda?
- Vou descer para comprar um vinho. Tem algum lugar aqui perto?
***
- Está tudo bem, mãe.
- Porque você está me dizendo que está tudo bem ? Nem te perguntei nada ? O Dário chegou ? Ele está aprontando ?
- Está tudo bem, mãe.
- Quando o Dário chegou ? Sua voz está abatida. Quer que eu vá aman…
- Não, mãe! Está tudo sob controle…
- Ele anda aprontando, né? Está bebendo? Por que você não fala, Ana Maria ?
- Porque está tudo bem, mãe!
- Então porque essa vozinha?
- Não sei… Deve ser sono.
- Se acontecer qualquer coisa, ligue…
- Não vai acontecer nada mãe, por favor.
- Se ele começar a quebrar…
***
Há coisas que um escritor simplesmente não pode escrever. Ele tem, como os criminosos extremos, uma síndrome de Deus que o faz pensar que suas palavras têm o poder de criar realidades. Faça-se a desgraça, e a desgraça se faz; mas Madalena continuava taquicárdica, apesar de já ter tomado o calmante, e chorava, sentada com a cabeça apoiada na palma das duas mãos…
- Eu não suporto mais essas crises. De que adianta tanto livro, tanta psicanálise, montes de remédios, se você está sempre assim ? Você pelo menos fez a janta?
- Mesmo vindo aqui todos esses anos, você nunca ligou pra mim, não é? Só vive no seu mundinho, olhando para o seu próprio umbigo.
- Sempre essa conversinha. - disse, derrubando no chão um vaso de porcelana que Madalena havia ganhado de presente de sua mãe - Quando você vai crescer e se tornar uma mulher de verdade? Você já tem quase cinquenta anos…
- Augusto, não acredito que você fez isso!
- Tome seu remédio, vá dormir, não em encha o saco…
***
- Seu marido está aí?
Ana esquecera de passar a chave na porta.
- O turno termina hoje à tarde. Dário deve chegar hoje, por volta das duas da tarde…
- E sua mãe?
- Mamãe não volta mais aqui. Tenho certeza.
- Já assistiu Round 6 toda? Posso trazer alguma coisa pra gente beber e terminar de assistir?
- Não vou conseguir beber nada hoje, já estou com dor de cabeça. E ainda é cedo. Não quero ter bebido nada quando o Dário chegar.
- Tá. Eu trago uma Coca-cola então.
- Mas a gente vai assistir só um episódio.
- Só um?
- Você não tem ninguém, não? Fica entrando assim na casa dos outros… Eu sei que o Dário não tem, nem teria ciúme nenhum de você. E a portaria do prédio ?
- Estou de folga hoje.
- É o outro menino que vai te rende hoje?
- Para com essas insinuações…
***
Madalena chegou da praia. Entrou molhada pelo saguão do prédio, deixou um monte de areia no elevador, apertou o 8. Sentou-se ainda de maiô na poltrona da sala. Respirou. Respirou fundo. Tomou um banho, se perfumou. Colocou o vestido preto, já passado e arrumado sobre a cama. Olhou o tempo. Vinha uma bela tarde. Augusto dormia no outro quarto. Ouviu o ruído do ar condicionado ligado. Abriu a janela e pulou.
***
- Tudo bem por aí?
- Puta merda! Você não perde essa mania… Dário chegou e não trancou a porta..
- Vamos começar outra série ?
- Depois a gente combina…
- Dário? Esse é o porteiro. Já conhece ele?
-
- Deve estar ocupado… Depois a gente combina, então.
***
- Como estão as coisas?
- Está tudo bem, mãe.
- Tem certeza? Como ele está?
- Normal, mãe.
- Estou ligando para dizer que tem correspondência… Você tem que atualizar esses endereços, Ana Maria. Peraí, deixa eu ver… Duas, três… Essa aqui… Ana Maria, Dário Augusto… Cinco correspondências.
- Dário vai passar aí…
- Não ! Pelo amor de Jesus Cristo… Eu peço para o Adriano levar aí de moto. Está bem? Vou desligar porque estou com panela no fogo.
***
Quando Dário não estava, a porta já ficava aberta de propósito.
- Peraí, Ana… Eu vi seu marido saindo hoje. Não é o Sr. Augusto do 808?
Murakami constrói universos, dá amostras logo no início, e faz você desejar de cara a habitação daquele mundo. A aclimatação é rápida. É uma lógica de romance. Outros te enchem com tantas dúvidas e mistérios que você só consegue entrever um vislumbre de explicação. Deve haver algum universo por detrás desses retalhos todos. Salinger é assim. Essa é uma lógica de narrativas breves.
O que os cruzadinhos e cruzadões não sabem é que o que vence os hereges (pois a heresia, como bem notou
da semana passada, não se vence, ela volta e só será extinta no paraíso) não são os seus sublimes e infalíveis argumentos, mas é o Espírito Santo. E o Espírito Santo usa o que quer.
Aliás, é muito interessante essa perspicácia de olhar para a heresia como parte da precariedade deste mundo. Um olhar triunfalista poderia cravar: “Martelo dos hereges ! Demoliu a heresia!”. Opa, peralá, cara pálida, a gnose (você grita interiormente a cada segundo, nas redes sociais: GNOSE! GNOSE! GNOSE!) não está de volta, sempre e sempre, um cadáver insepulto, que retorna como um zumbi e nunca se deita definitivamente, apesar de começar a ser combatida já nas escrituras, nas cartas de São João e ter recebido porradas consideráveis da parte de Santo Irineu, dos concílios e dos papas? A heresia sempre volta, porque heresias sempre tereis entre vós e porque não se arranca o joio antes da hora. Portanto, serenidade, paciência e humor.