Se você liga para spoilers literários, leia antes o conto Um dia ideal para os peixes-banana.
Por que Seymour Glass suicidou-se ? Lancei a pergunta essa semana no twitter e obtive boas respostas, que me ajudaram a aprofundar um pouco a questão. Sendo um leitor obcecado de Salinger, esta é uma das perguntas da minha vida. Sempre digo para mim mesmo que, em termos de narrativas curtas, se eu passasse toda a minha vida só lendo Salinger, Flannery O’Connor e, talvez, Clarice, eu seria um leitor melhor. Claro que eu estaria perdendo uma maravilha do tamanho de “Um vislumbre de explicação” de Graham Greene ou os deslumbrantes três contos de Flaubert. Ou, talvez, Tchekov, do qual não sou íntimo. Bom, a Salinger, Flannery e Clarice eu teria que juntar Tolstoi, que escreveu narrativas curtas que foram e são definitivas para a minha vida de leitor. Mas estou, para variar, tergiversando. O assunto aqui é o suicídio de Seymour Glass. É uma daquelas perguntas sem resposta que foi criada mais para nos introduzir num universo do que para ser respondida. É uma questão mais para incitar a busca do que a resposta. Os meus amigos Diogo Rosas G. e Hugo Langone deram respostas que eu não queria ler, porque achava que estavam no trânsito superficial do conto. Eu tô numas de ler Salinger da perspectiva exo e esotérica. Mas, pensando bem sobre o que me responderam, vejo que não, a perspectiva que eu estava vendo como superficial e exotérica acampa sentidos tão profundos - e talvez mais ainda - do que aqueles supostamente místicos e esotéricos.
“Depressão maior. Nunca tive dúvida”, me respondeu o Diogo. Rebati, perguntando se ele não achava que a depressão e o stress pós-traumático seriam os motivos nos quais Salinger gostaria que acreditássemos logo de cara . Será que ele não teria feito isso de propósito e jogado pistas "místicas" nos contos e nas novelas que levariam a sentidos mais profundos ? Diogo continuou: “… acho que a tensão, o paradoxo, está justamente no suicídio depressivo de alguém que tinha entendido tudo sobre a vida e o universo, não? É como se o Salinger dissesse: ‘Vocês que se virem com essa ideia’”.
E o Hugo Langone também respondeu: “Por se sentir um ‘outsider’ no pós-guerra, talvez?” E, concordando com o Diogo: “Precisamente. Pense só que o fato de tamanha ‘iluminação’ ser um mero verniz é uma ideia bastante desconcertante; ou, então, que a experiência do mal humano na guerra poderia ser fardo pesado até para tão grande espírito...”
Eu acho que essas repostas, na linha tradicional de interpretação, são excelentes. É o que sempre pensei até me deparar com as pistas místicas, que abrem possibilidades. Sobre as tais pistas, Diogo perguntou-me qual minha interpretação, quais pistas seriam essas e qual leitura alternativa deriva delas. Bom, eu não tenho nenhuma interpretação. Só tenho a pergunta mesmo. Me contento (ou me descontento, ninguém está descansando com uma pergunta nas mãos) em ficar com ela. Mas em outro ponto da newsletter devo abordar uma destas que considero uma pista mística (talvez não diretamente ligada ao suicídio).
As respostas na clave oriental vieram de 1) Lucano Glass: “De tanta felicidade; o que é algo bem próximo do estado de zen, que por sua vez é próximo do estado de depressão suicida.” Faz todo o sentido. Uma vez que ele o faz logo após aquela epifania na praia com a Sybil. Ou ele atingiu uma iluminação súbita, como alguns mestres zen fazem, e daí o de tanta felicidade, que é onde tento me apegar, ou ele o fez porque a Sybil - a sibila, a pitonisa - fingiu (ela não poderia ter um traço de falsidade, pois era uma profetiza) ter concordado com o seu conto da carochinha sobre os peixes-banana para agradá-la, e ele, percebendo sua condescendência social (aquela que todo mundo tem, menos as sibilas), foi lá e - pum!
Lucano Glass continua: “Talvez seja também uma maneira de manter aludir ao mistério de tudo por meio da técnica zen de opostos: rápido/devagar felicidade plena/suicídio vida/morte”. É uma linha de interpretação perfeitamente viável. Salinger era um estudioso fascinado do misticismo e da espiritualidade orientais. Segundo Alcir Pécora, “do catolicismo ortodoxo ao zen-budismo e ao tao; do hinduísmo de Sri Ramakrishna e dos Advaita Vedanta ao de Swami Vivekananda; dos exercícios de krya-ioga ao misticismo sufi de Idries Shah, para não falar dos temas mais comuns da homeopatia, da acupuntura e da macrobiótica.”
Em “Erguei bem alto a viga, carpinteiros”, Seymour diz para Muriel que não podia casar-se pois estava feliz demais. Lucano rebateu: “Se matar de tanta felicidade. Só consigo entender isso como aquelas oposições zen mesmo...” Mas, pensando bem, isso é muito mais humano do que parece: conheço uma pessoa que quando se aproximava de eventos muito esfuziantes costumava ter crises de ansiedade e depressão. São Francisco de Assis costumava ficar preocupado quando as coisas iam bem demais. São João da Cruz e Romano Guardini… bem, deixa esses dois para outra ocasião.
Marcelo Ferlin comentou: “Eu desconfiava, talvez por birra, que as pistas eram uma forma de sugerir um motivo escondido, e com isso os leitores não pensariam a sério que o Salinger podia ter 'se inspirado' na Carson McCullers”.
E Pedro de Barros também foi na direção espiritual: “Eu sempre tive a impressão que foi uma espécie de “Harakiri” espiritual, uma iluminação radical e incompreensível, como o “Moksha” alcançado pelo Vivekananda (o Salinger o lia) durante uma espécie de “meditação-suicídio”. Como o Salinger era fascinado por todo o tipo de manifestação espiritual do Oriente, inclusive as mais esdrúxulas, tudo é possível.
Uma nota curiosa dos nossos tempos: quando postei a pergunta sobre o suicídio de Seymour Glass, algumas pessoas pensaram que era o Seymour Glass, pseudônimo usado pelo professor de filosofia que faz um belo trabalho nas redes sociais e é autor do “Pharmakon” (que reúne seus dois ótimos livros Ensaios sobre os deuses depressivos e Almas de Mármore).
Conheço o Seymour bem antes dele ser o Seymour e, apesar de ser um cristão agônico, como ele mesmo se define, posso garantir, está longe de suicidar-se.
Todo mundo já deve saber disso, mas as narrativas curtas de Salinger formam um panorama da família Glass. Tirando "O apanhador" (talvez), quem lê Salinger, deve ler a obra completa.
Claro que estou escrevendo - e transcrevendo - isso tudo sobre Seymour Glass para registrar a pequena meditação que fiz a partir das respostas que me deram no twitter. É para isso que serve essa newsletter.
E fica uma dica. Tenho relido Salinger a partir de um curso de pós sobre o escritor, dado pelo tradutor Caetano Galindo que está postado no YouTube no qual ele analisa cuidadosamente, em aulas que chegam a mais de três horas de duração, cada um dos contos de “Nove Histórias”. Link no fim.
Uma tradução de The Red Hand Files:
EDIÇÃO Nº 174 / NOVEMBRO DE 2021
É importante ter amigos?
FRED, BERLIM, ALEMANHA
Como você descreve a amizade? Quão importante é a amizade para a sua criatividade?
OZDEN, ESKISEHIR, TURQUIA
Que performance maravilhosamente emocionante e intensa no Brighton Dome! Amor e alegria irradiavam cada vez que você interagia com Warren; então eu gostaria de perguntar quais qualidades você procura em um amigo, se seus amigos são parecidos uns com os outros ou são uma mistura de muitas coisas que fazem o amor muito especial, muitas vezes duradouro, a ponto da amizade trazer influencias para a tua forma de compor ?
JO, BRIGHTON, RU
Caros Fred, Ozden e Jo,
Parece-me haver três níveis de amizade.
Primeiro, há o amigo com quem você sai e come, ou fica chateado, com quem você vai ao cinema ou a um show — você o conhece e tem com ele uma experiência compartilhada.
O segundo tipo de amigo é aquele a quem você pode pedir um favor, que cuidará de você em apuros, lhe emprestará dinheiro ou levará você ao hospital no meio da noite, alguém que cuide de você — esse tipo de de amigo.
O terceiro nível de amizade é aquele em que seu amigo mostra o que há de melhor em você, que amplifica os aspectos corretos de sua natureza, que o ama o suficiente para ser honesto com você, que o desafia e que o torna uma pessoa melhor.
Nenhum desses níveis se exclui mutuamente e às vezes você encontra alguém que preenche todas essas categorias. Se você encontrar um amigo assim, segure-o. Eles são raros.
Warren é um grande amigo. A razão pela qual tivemos uma colaboração artística tão longa e produtiva é porque esses três níveis de amizade estão firmes; entendemos a natureza da amizade e cuidamos da própria amizade.
Quando Warren e eu tocamos música juntos, não temos que lidar com os problemas de um relacionamento instável, ou questões de status, ou disputas de poder. Somos amigos, pura e simplesmente, e apenas continuamos com o trabalho que temos à mão — duas pessoas criando algo maior do que a soma das suas partes, e os frutos da colaboração emergindo diretamente da própria amizade.
Com amor,
Nick
Buddy Glass está num carro com a dama de honra, o marido dela, uma parente da noiva e um velhinho surdo-mudo dirigindo-se ao apartamento dos pais da noiva, depois de desembarcar no hotel onde seria realizada a cerimônia do casamento de Seymour com Muriel e descobrir que o noivo não aparecera. Ninguém aparentemente sabe que Buddy é irmão do noivo. As cenas, os diálogos, o clima, tudo o que acontece neste carro é sensacional e revela a maestria literária de Salinger. O clima está tenso, faz um calor dos infernos, a dama de honra faz uma análise psicológica acusando Seymour (que Buddy considera um santo, um místico) de pederastia e de ser uma espécie de psicótico por fazer o que fez (ainda não sabiam que Muriel fugiria com ele); Buddy tenta defendê-lo, e, de repente, sua identidade é revelada, gerando uma tensão maior ainda. Desde a entrada no carro, Buddy vinha observando o velhote minúsculo de fraque e cartola, pelo qual logo nutriu uma imensa simpatia (“tive o breve desejo de pegar o sujeitinho no solo e fazê-lo passar delicadamente pela janela aberta”), que se portava como uma espécie de monge zen, que sempre olhava fixamente para o mesmo lugar e enfrentava com uma serenidade passiva toda aquela situação. Ele, esse velhote, era uma espécie de representante de Seymour ali. E no momento mais constrangedor, o da revelação da sua identidade, Buddy olha para ele e capta a sua insularidade:
“Eu dei uma espiada num ponto atrás dela, furtivamente, para ver o quinto passageiro - o velhote minúsculo - e confirmar se sua insularidade continuava intacta. Continuava. Jamais a indiferença de uma pessoa me consolou tão profundamente”.
Uma listinha, bem simplória, como não poderia deixar de ser:
5 álbuns sem os quais você não conseguiria viver (mentira, é só um título roubado da Spin )
1 — The Dark Side of the Moon—Pink Floyd
Ouvir esse disco aos 13, 14 anos, no meio dos anos 80 mudou minha vida. Tudo aqui é extraordinário e maravilhoso. A capa, a produção, os efeitos, os arranjos, as composições e a execução. Perdi a conta das vezes em que me postei debaixo das caixas de som para ouvi-lo em volume altíssimo. Cada audição, uma experiência. Dark Side of The Moon é uma educação musical.
2 — The Queen is Dead—The Smiths
A obra máxima da melhor banda de todos os tempos. Morrissey nunca esteve tão ácido e deprimido e Marr tão inspirado e criativo. Uma porrada (pós) punk, baladas para cortar os pulsos, canções ensolaradas e típicas smithices. Um álbum irretocável.
3—Abbey Road —The Beatles
Poderia ser o Álbum Branco, mas o Abbey Road é o máximo. Simples, sem arranjos grandiloquentes, mas sofisticadíssimo em sua simplicidade. É o álbum mais coeso dos Beatles, parece tudo encaixadinho, com os quatro compondo e tocando muito. Um álbum na concepção mais específica do termo: não é conceitual, mas tem uma unidade, parece ter sido perfeitamente concebido para ser ouvido de cabo a rabo.
Assistam Get Back, de Peter Jackson. Ainda não tenho condições de escrever sobre o documentário.
4—Astral Weeks— Van Morrison
Tudo o que queria escrever sobre esse disco já escrevi. Está no meu Medium. Em resumo: é o registro de um sujeito tomado por um “daimon" musical, compondo com extraordinária espontaneidade e gravando tudo com os melhores músicos de jazz (sendo Morrison muito mais um cara do r&b, do soul branco e do folk), improvisando tudo, quase sem ensaiar. Obra de gênio.
5— The Joshua Tree-—U2
Eu poderia citar qualquer outro aqui para parecer mais cult e sofisticado, mas a verdade é que o mergulho do U2 na alma americana é um dos discos da minha vida. Bono no auge da emoção vocal e da poesia (quando não resvala na chatice messiânica), The Edge, auxiliado por Brian Eno e Daniel Lanois, criando arranjos mágicos e inesquecíveis, e a cozinha pulsando com aquela competência de sempre.
O mundo vai te maltratar, mas você vai encantar o mundo.
Links:
Alcir Pécora, sobre traduzir Salinger.
Caetano Galindo, e seu curso on-line sobre o Nove histórias.
As lives de João Filho com Adriano Ferreira Leite: uma educação literária.
ô susto que levei no título