“Encontro um velho conhecido de faculdade. Sujeito letrado, inteligente, fino, ele conta que trabalha como "peão" numa fábrica. "Que desperdício de talento", penso. Tem o rosto roído por rugas e os cabelos já ralos. Fala do trabalho, da casa, do filho. E sorri. Um sorriso limpo.” (Rafael Guedes)
Deveria ser normal encontrar sujeitos assim — letrados, inteligentes e finos — em todos os setores da sociedade. Hoje me deparei com uma cena que faz parte de um livro de Annie Dillard, uma escritora cristã contemporânea, sofisticadíssima e peculiar, daquelas criam um universo particular para abrigar seus leitores. O universo de Dillard é estranho e familiar, como é comum aos territórios sagrados. Mas não pense que ela é uma beata. O sobrenatural para Dillard se esconde sob o disfarce da natureza, dos fatos e das relações. A cena que me paralisou envolve um percevejo aquático gigante abatendo uma rã. Para tornar a coisas mais visual, fui procurar no YouTube um documentário que ilustrasse a cena. Encontrei. As imagens eram menos impressionantes do que a descrição de Dillard. Que escritora fascinante!
Na verdade, o que mais me chamou a atenção foi um dos comentários ao vídeo: "Quem está aqui por causa de Annie Dillard?”. Saber que diversas pessoas haviam chegado ao vídeo por causa do livro ganhador do Pulitzer, Pilgrim at Tinker Creek , de Annie Dillard, e que o mesmo é adotado como leitura extraclasse nas escolas americanas é incrível. Muitos foram assistir ao vídeo porque estavam fazendo um trabalho de escola. Tinker Creek não é exatamente um livro fácil nem popular. Adotar uma obra desse porte numa escola comum aqui Brasil me parece impensável. Apesar da professora Gabriela ter feito meu filho ler Shakespeare, Cervantes, Wilde e Hemingway do ano passado pra cá.
De todo modo, acho que o caso que Rafael descreve na citação que abre esse texto não é bem esse. Me parece que no Brasil os sujeitos que estudam por curiosidade intelectual, por buscarem a verdade ou por desejo de formação humana e não seguem a via acadêmica, tendem a não encontrar grandes espaços no mercado de trabalho. Aqui os cargos técnicos e burocráticos são muito mais valorizados do que os puramente intelectuais. Acho que o velho conhecido de Rafael é um desses. De qualquer forma, a finalidade primordial do estudo não é ganhar dinheiro.
Mas como não estou aqui para reclamar, volto à Annie Dillard.
Dillard tem sido para mim uma espécie de tesouro escondido reencontrado. Já tinha lido alguns livros, desde que a descobrira pelas mãos de Philip Yancey, escritor evangélico, mas confesso que já há algum tempo a havia deixado de lado. Retomei agora a leitura de alguns trechos, depois que vi que ela tem encantado escritores não-cristãos. É mais um caso de escritor que retorna para mim pela via secular. E tem sido um agradável reencontro. Justamente agora que voltei a caminhar pela cidade e incluí em meus roteiros voltas pelo meio do mato. Ler é reler.
Como já dito, Annie Dillard ganhou o Pulitzer de não-ficção em 1975 por sua obra Pilgrim at Tinker Creek. Peregrinando em Tinker Creek. Gosto de uma tradução portuguesa — Uma temporada em Tinker Creek, Alguns críticos a querem colocar na tradição dos naturalistas, como Emerson e Thoreau, mas ela mesma diz que escreveu um livro de teologia. A partir de explorações nas imediações de sua morada em Tinker Creek, especialmente da observação de um riacho, em meio a uma natureza deslumbrante (e, por que não, aterrorizante), ela reflete sobre a vida, a morte, o problema do mal, a passagem do tempo. E, claro, faz teologia. Dillard é uma presbiteriana que se converteria posteriormente ao catolicismo e se utilizou de seu diário pessoal como base para as reflexões que permeiam suas elucubrações. O livro tem quatro sessões, nas quais Dillard se usa das estações para cobrir o período de um ano. Com uma perspectiva bastante peculiar e um olhar contemplativo — e às vezes científico, sem nunca deixar de lado certo aspecto místico — ela encara a natureza como um livro de revelações divinas que precisam ser observadas com paciência demorada para que sejam entregues. Cada coisa — animais, plantas, pedras — é uma palavra que merece ser ouvida. Dillard, enquanto penetra nos pequenos mistérios diários de Tinker Creek, vai deixando um rastro de reflexões sobre fé, natureza, escrita, cultura e expansão da consciência. É teologia, porque enquanto contempla o pulsar da vida em cada ser, penetra-lhes a essência com olhar arguto e vislumbra a eternidade escondida nas coisas aparentemente simples. Cada paragem é um jardim. Tinker Creek é um jardim. Os lugares ermos de Cantagalo são um jardim. Cada jardim é um Éden. Cada lugar olhado com amor contemplativo é o Éden revisitado.
Após o Pulitzer, Dillard deu prosseguimento ao estilo de Tinker Creek (“Holy the firm”); escreveu sobre a própria infância (“An American Childhood”); escreveu ficção (o romance “The Maytrees”) e ensaios (“Teaching a Stone to talk”, onde está o maravilhoso “Eclipse total”). Personalidade excêntrica, reclusa e discreta, não dá entrevistas, fuma feito uma chaminé, é divorciada, gostava de rezar e cantar com a gente simples das igrejas consideradas “fundamentalistas” e é apaixonada pela beleza da liturgia católica.
Annie Dillard fez relativo sucesso nos EUA. Foi livro comum nas escolas de lá. Foi homenageada por Obama com a National Humanities Medal em 2014. É uma autora a ser descoberta também por aqui. Não temos similares. Nossos autores de cosmovisão cristã são influenciados pelos franceses de ênfase moral, angustiados e sombrios, como Bernanos e Mauriac. Não temos uma tradição cristã luminosa, embora Chesterton tenha se popularizado por aqui nos últimos anos (não exatamente porque valorize mais a alegria do que a angústia). Mesmo Gustavo Corção, que se deixou influenciar por Chesterton, apesar de brilhante, é duro e moralista.
Dillard seria uma chance para nós. Seria, porque duvido que alguém vai querer publicá-la por aqui.
"Todas as coisas para as quais não temos palavras se perdem. A mente - a cultura - tem duas pequenas ferramentas, a gramática e o léxico: um balde decorado de criança, com uma pá a condizer. Com estas duas coisas, lançamo-nos sobre os continentes e fazemos todo o trabalho do mundo. Com elas, tentamos salvar as nossas próprias vidas."
ANNIE DILLARD in "Eclipse Total" in "Ensinar uma Pedra a Falar", p. 32
Uma senhora atravessa a praça. Conheço sua história. Três filhos criados que já foram embora. O marido também se foi, passei por ele semana passada com outra senhora mais nova. Está muito bem arrumada — elegante e triste. A vida é muito longa quando se está sozinho.
O poeta era obrigado a escrever crônicas no semanário para alimentar seus filhos. Sentia-se incomodado, não era cronista, seu projeto era escrever um poema épico sobre a fundação de sua cidade. Foi quando passou alguém de bicicleta e gritou: "Parabéns pelo texto de hoje!" Pode parecer cafona, mas nunca se sabe o quanto um comentário aleatório pode significar uma das verdadeiras bondades dessa vida.
Elucubrações teológicas de um bêbado numa esquina: "Se Deus morreu, só pode ter sido Satanás quem o matou..."
O disco novo do Wilco, “Cousin”, tem sido taxado de experimental. Não é tanto. Tem uns barulhinhos, certas estranhezas nos arranjos e algumas melodias meio tortas. Tudo o que tem o poder de transportar para além do mero entretimento causa estranheza hoje. O que importa mesmo são as canções. O Wilco tem grandes canções. Queiram eles emoldurá-las com uma cara mais tradicional, como em “Cruel Country”, o duplo anterior, ou dar a elas um tratamento mais complexo e sofisticado, como em “Cousin”. Tendo nas mãos uns conjunto de grandes canções, tudo irá bem.
TAREFA SAGRADA
Escrever não é
O gesto mais sagrado.
Mais sagrado é levar
A marmita enrolada num pano.
Preparada com zelo
Quase sacerdotal,
Que o carcereiro revolve
Em busca de armas e drogas.
E o seu menino come, sujo, o farnel,
às lágrimas. Suas e dele.
Esta é a tarefa sagrada.
Sufjan Stevens, que perdeu o companheiro recentemente, gravou mais um disco sobre perda e luto, “Javelin”, que parece ter saído diretamente de suas entranhas para o mundo. E teve a audácia de fazer do dito “Everything that rises must converge” (que pode ter vindo de Teilhard de Chardin ou de Flannery O’Connor) o refrão de uma linda canção. Aliás, Sufjan Stevens parece saber que o que faz a canção é a nudez (a canção essencial, com a voz acompanhada de piano ou violão) e o sentimento. Embora ele saiba muito bem construir o invólucro para o essencial. Sufjan é cristão e gay. Essa tensão normalmente rende obras sensíveis e pungentes nas mãos de gente talentosa. E essa cara tem talento de sobra.
A sensacional tradução do poeta Wladimir Saldanha para a clássica “Canção da Torre Mais Alta”, de Rimbaud:
Canção da Torre Cimeira
Juventude lesa,
Demais submetida,
Aparências preza
E eu perdi a vida.
Ah, tempo! Que aportes
Corações mais fortes.
Disse a mim: despreza,
Nem te veja alguém;
E sem mais promessa
De altas joias nem
Razão não te susta,
Retirada augusta.
Tive foi paciência,
Eu lembro de mim.
Sofrimento e crença
Vão aos céus no fim.
E a sede sem cura
Faz-me a veia escura.
Como a pradaria,
Ao léu, sem apoio,
Crescida, floria
Com benjoim e joio
Às zoeiras toscas
De cem porcas moscas.
Viuvez sem contagem
Da pobre alma, fora
Apenas a imagem
De Nossa Senhora!
Mas quem rezaria
À Virgem Maria?
A explicação do tradutor Wladimir Saldanha:
Convivo há muito tempo com esse poema, que o mestre Ivo Barroso traduziu, como tudo de Rimbaud. Prefiro chamar a "mais alta torre" de "cimeira", resgatando essa palavra do português. E, quanto ao famoso "por delicadeza", prefiro o sentido biográfico do poema, escrito quando Rimbaud teve que voltar a Charleville, contrariado, para que Verlaine pudesse tentar salvar seu casamento (no nosso sentido de "salvar as aparências"). Essa interpretação está desde o primeiro biógrafo de Rimbaud, ainda no século XIX. De mais a mais, nunca se poderia dizer de Rimbaud que perdeu algo "por delicadeza".
Segue o original francês:
CHANSON DE LA PLUS HAUTE TOUR
Oisive jeunesse
A tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah ! Que le temps vienne
Où les coeurs s'éprennent.
Je me suis dit : laisse,
Et qu'on ne te voie :
Et sans la promesse
De plus hautes joies.
Que rien ne t'arrête,
Auguste retraite.
J'ai tant fait patience
Qu'à jamais j'oublie ;
Craintes et souffrances
Aux cieux sont parties.
Et la soif malsaine
Obscurcit mes veines.
Ainsi la prairie
A l'oubli livrée,
Grandie, et fleurie
D'encens et d'ivraies
Au bourdon farouche
De cent sales mouches.
Ah ! Mille veuvages
De la si pauvre âme
Qui n'a que l'image
De la Notre-Dame !
Est-ce que l'on prie
La Vierge Marie ?
Oisive jeunesse
A tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah ! Que le temps vienne
Où les coeurs s'éprennent !
Não me despeço sem dizer que Bonnie Prince Billy lançou um álbum verdadeiramente despido de instrumentos eletrônicos. Acústico, sem bateria. Bonnie tem idade e sabedoria o suficiente para saber que é um trovador folk e que, apesar de ter se aventurado por outras paragens, é para seu violãozinho básico que um dia sempre irá voltar. Ainda que acompanhado de bandolins, violas, violinos e um saxofone, é o violão quem dá o tom melancólico — e sempre apocalítico, em se tratando de Will Oldham — em “Keeping secrets will destroy you” (título fantástico). O compositor continua com a pena afiada, e as canções, ternas e sombrias. Há um certo clima doméstico. Oldhan agora é pai, então há feixes de luz em seus apocalipses particulares.
É uma sacanagem eu falar desse álbum sem citar as letras. Fica pra próxima.
Ouça o disco, viva seu apocalipse.