"Gerard era virado para dentro como um cálice de ouro que trouxesse uma única hóstia sagrada, fadado a um destino glorioso".
- Jack Kerouac, Visions of Gerard (1963)
Nick, acho você um homem muito sábio e sensível. Por favor, me dê um conselho: Tenho uma enorme queda por um cara, um músico, ele está deprimido, bebe demais e vive constantemente a me perseguir. Meu coração está tão despedaçado... O que devo fazer?
Ira, CDMX, Cidade do México
Querida Ira,
Obrigado pelas suas palavras gentis, mas não estou certo de que eu seja sábio e sensível, e provavelmente não sou a melhor pessoa para aconselhar acerca das questões que envolvem o amor. Certa vez, uma amigo disse sobre mim, “receber conselhos equivale a ser medido pelo agente funerário.” Ainda assim, parte da premissa de The Red Hand Files é que aqui tenho a chance de responder a qualquer coisa.
Sêneca, o estoico, um conselheiro muitas vezes astuto, disse que não devemos “confiar em nós mesmos para cair em um estado desordenado, descontrolado, escravizado a outro, desprezível para si próprio”. O amor não correspondido é visto como impraticável, prejudicial e uma perda de tempo. Ira, lamento dizer que é esta a situação em que você se encontra, e os estoicos lhe diriam: "Sai fora rápido!”
Mas, na verdade, não tenho certeza de nada. Parece-me que amar tolamente é o mais humano dos gestos, e que a maior parte do amor no mundo não é correspondido, pois perdemos os nossos corações por causa de um gesto arbitrário, uma palavra inesperada, um olhar casual. Somos impelidos por um galanteio fortuito para uma esfera de anseios, rica de imaginações e sonhos calorosos, e somos conduzidos a alguém que não se apercebe da natureza plena do nosso desejo. É uma espécie de loucura, não muito diferente da crença religiosa — tanto desejo e ânsia dirigidos a uma entidade que é tantas vezes arredia e indiferente. Mas este desejo não correspondido derramado no universo é a energia que faz girar o mundo. Sonhos loucos de amor lançados numa direção e jamais respondidos.
Ira, você tem uma queda por um músico deprimido com um problema de alcoolismo que provavelmente não sente o mesmo por você. De qualquer modo, este não parece ser o ponto de partida mais sensato para uma relação e, pela minha considerável experiência nestes assuntos, o que posso dizer é que uma relação deste tipo vivida no âmbito da imaginação é muito mais divertida do que a coisa real. O meu conselho, portanto, é que você sonhe um pouco mais — esse sonho doloroso que lhe esquenta o coração, esse sonho louco que dá um sentido repentino à sua vida, esse sonho condenado que mantém as estrelas no lugar — sonhe até que o sonho perca finalmente o seu encanto, depois siga o conselho de Sêneca e sai fora o mais rápido possível. Você vai se curar, você sabe, nós sempre nos curamos.
Com amor,
Nick
Fonte: The Red Hand Files, ISSUE #251 / SEPTEMBER 2023
HÁ UM RESQUÍCIO DE DESPEDIDA…
Há um resquício de despedida que nunca abandona teus gestos.
O peixe, mesmo tocado por tuas mãos, não dura mais que uma manhã e uma tarde,
E não se pode guardar o pão para o dia seguinte.
“E, levantando-se de manhã muito cedo, estando ainda escuro, saiu”
Tu não esperas as demoras dos homens que te buscam
Todos te buscam
Queres as aldeias vizinhas
Queres falas curtas sobre tua tarefa
Carregas os fardos secretos desse mundo
Batendo as poeiras de teus pés contra uma cidade que se recusa a amar.
A favor do amor
Tu esculpes as tardes
O tempo é argila
Os pregos que prendem as cores às coisas não te puderam prender
Mas te deixaste sacrificar por mãos indignas
Por cravos muito mais vis
Dissipaste toda confusão mental
Ao não aceitar o torpor do absinto
E venerar a razão, desejando a consciência de uma vida examinada
Até o fim
Tu não aceitas a hipocrisia dos homens
Tu não aceitas a hipocrisia
A alma dúbia que joga o irmão no buraco
A alma cega que tropeça em si mesma
O sangue morno que vomita seu próprio plasma
Os pés inconstantes que caminham para trás
Tu abraças a todos, mas não aceitas a hipocrisia.
Tenho 20 anos, terminei o liceu, estou vivendo um ano sabático, mas acho que é inútil fazer o que quer que seja neste mundo bizarro e transitório, tão contrário aos meus valores em todos os aspectos possíveis. Creio que estou dando a voz a uma geração. Pergunto com a maior admiração: o que você faria na minha/nossa situação?
El, Frankfurt, Alemanha
Caro El,
Você está coberto de razão ao descrever o mundo como "bizarro e transitório” — é de facto um lugar estranho e profundamente misterioso, sempre mudando e se refazendo de novo. Mas esta não é uma condição nova, o nosso mundo não se tornou bizarro e provisório apenas recentemente, tem sido assim desde o seu início e continuará a sê-lo até ao seu fim — desconcertante e em estado de fluxo contínuo.
O mesmo se pode dizer dos nossos valores, que também podem ser precários e permanentemente flutuantes. Se a minha experiência serve de referência, os valores que hoje consideramos sagrados podem mudar e ser consideravelmente diferentes dos que nos serão caros daqui a dez anos — e quase irreconhecíveis se os compararmos com os que teremos numa idade mais avançada. Também pode ser que alguns dos valores que você agora considera como verdades incontestáveis sejam vistos com desconfiança, ou mesmo desprezo, pelas gerações futuras — uma constatação humilhante, se é que alguma vez tenha existido. No passado, por exemplo, o fato de uma pessoa mais velha dar conselhos a uma pessoa mais nova era um valor considerável para todos, mas hoje isso é por vezes visto de modo completamente diferente.
Ainda assim, El, você me fez uma pergunta e, portanto, vamos a ela — o que é que você e sua geração podem fazer para viver vidas plenas num mundo bizarro e transitório, e que não compartilha valores com vocês. Bem, eu não sugeriria nem por um momento que mudassem seus valores, porque apesar de os valores evoluírem e crescerem, eles são, em qualquer instância, uma parte crucial da nossa natureza e fundamentais para o desenvolvimento do mundo. A minha sugestão seria, em vez disso, olhar para duas qualidades que melhorarão imensamente a sua vida.
A primeira é a humildade. A humildade consiste em compreender que o mundo não está dividido em pessoas boas e más, mas que é composto por todo o tipo de indivíduos, cada um alquebrado à sua maneira, envolvido pela luta humana comum, e cada um com a capacidade de fazer coisas tão terríveis quanto belas. Se compreendermos e reconhecermos verdadeiramente que somos todos criaturas imperfeitas, apercebemo-nos de que nos tornamos mais tolerantes ao aceitar os defeitos uns dos outros e o mundo parecerá menos dissonante, menos desolador e ameaçador.
A outra qualidade é a curiosidade. Se olharmos com curiosidade para as pessoas que não partilham os nossos valores, elas tornam-se interessantes em vez de ameaçadoras. À medida que fui amadurecendo, prendi que o mundo e as pessoas que o habitam são surpreendentemente interessantes e que, quanto mais olhamos e ouvimos, mais interessantes se tornam. Cultivar uma mente questionadora, da qual a conversação é o principal instrumento, enriquece a nossa relação com o mundo. Dialogar alguém de quem posso discordar é, para mim, um dos grandes prazeres desta vida.
Enfim, meu conselho é que tentemos usar mais a humildade e a curiosidade — estes atributos podem trazer leveza aos nossos sistemas de valor, por vezes inflexíveis e excludentes. Elas nos permitem permanecer fiéis ao nosso eu temporário e ainda nos manter flexíveis e bem-dispostos em nossas relações com este mundo estranho e em constante mudança.
Com amor,
Nick
Fonte: Fonte: The Red Hand Files, ISSUE #252 / SEPTEMBER 2023
CANTIGA DE EMBALAR (AFTER DRUMMOND)
O mundo não vale uma alma,
menino.
Cantei pra você dormir,
e o que veio foi sede.
E o que me importa
se não é sede de água?
Que você se jogue
Sobre os espinhos da vida
Como um abstêmio
Que só quer o vinho,
Se a vida é vinho?
O mundo não vale
o seu sorriso,
menino, e o seu sorriso
vale a face do sacrifício.
E eu aprendi que nem o sacrifício
serve à satisfação de Lili,
que não amava ninguém.
O mundo não vale
a menor alma.
Nem o súbito suspiro da menor
Alma.
E se há um grito que sobe
do fundo deste vale
onde a sombra dorme,
é por sexo
e morte.
E Deus.
Não é pelo vil infortúnio
que vaga pelo mundo
sem destino,
sem sentido.
É o elã impresso na alma
imoral,
que atravessa o deserto do erro
e erra o alvo desejado.
Não é um barco a esmo,
nem um vento aleatório
a empurrar as velas.
Não é o instinto faminto
do cavalo a arrebentar
cercas com os peitos.
Não é a organização cega
das abelhas a produzir
o mel de Tupelo.
Não é nem isto, nem nada.
É o princípio organizador
por detrás do pensamento
que injeta em suas vias
um desejo de música,
que a música nunca pare,
que o cantor nunca deixe
de sustentar o canto,
e que o desejo de beleza
que faz o artista se sacrificar,
que faz o público pousar a agulha
sobre os sulcos do vinil
nunca se dissolva
noutras absurdas figurações.
Ah! O mundo tem sentido, sim.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
(o canto do sabiá no pé de hibisco)
(o som das pétalas ao cair no dorso das campinas)
(a glória das manhãs que se levantam
com suas luzes silenciosas)
não estão calados, e o dia
que transmite ao outro a sua mensagem
que a noite à noite repete
não é uma língua nem são palavras
cujo sentido não se perceba.
Não há negrume circundante,
mas uma tenda armada para o sol.
Silêncio: o que dizer?
Que diz a boca do mundo?
Menino, o mundo é espantoso
(mas não vale uma alma)
e o hálito que preenche o universo,
ele, que tem unidas todas as coisas
ouve toda voz.
O mundo vale a pena,
e a pena existe porque salva o mundo.
Menino, façamos valê-la.
Nossas dores e esquecimentos
memórias e gozos.
Nossas mais vívidas lembranças
e a cena
que se se desenrola agora
à nossa frente
são o cálice a ser sorvido.
Lancemo-nos, menino,
sobre este vinho
que se transformou em sangue,
porque ele é nosso.
Sejamos fortíssimos e verdadeiros
pois nada é como se fosse,
mas tudo é, como sempre foi.
Menino, usemos as palavras
e a alma, que é o nosso âmbito.
Ofereçamos um mundo aos outros:
calçamos os mesmos sapatos.
Menino, sejamos o que somos
— e o que somos é o que nos é dado —
e no resplendor da verdade
do mundo que brilha para nós,
ofereçamos nossa imagem,
intelecto, vontade e liberdade,
pois nada haverá de mais puro,
lídimo e cheio de ventura
que o sonho, com gosto de sonho,
e o toque áspero da realidade.
O sonho existe, mas não é
apenas sonho.
Menino, assim acordados,
lúcidos de vinho novo, suaves,
ou assim abandonados,
deixados, por nossa própria vontade,
nas mãos de um outro,
deitemo-nos na palma do tempo
— o tempo é criatura —
sejamos o que os três desejam
que sejamos, num mundo
que é reflexo: infinitos.
Acredito que os dois poemas são seus, Sérgio. São belíssimos! Comoveram-me!
Me alegra ser contemporâneo do Nick Cave, cuja sensibilidade é espantosa. Seu trabalho de tradução de "Red Hand Files" é uma das coisas que mais gosto em toda a internet, Sérgio. Belíssimos poemas, aliás! Fiquei particularmente encantado com dois versos: "A favor do amor/Tu esculpes as tardes"... Obrigado!