A incontrolabilidade do mundo
"Os diários da bicicleta" ou "Homens como árvores que andam"
1.
Depois de tanto tempo reconhecera a meia com que a mãe fora enterrada. Só havia uns poucos ossos e aquela mecha de cabelos acinzentados, embora ela não tivesse ainda sessenta anos quando falecera. A doença a desmontara. Por que o coveiro a convidara para ser testemunha da exumação do corpo da própria mãe? Não podia ter feito a delicadeza de ter chamado outra pessoa? Será que ninguém da família poderia ter se oferecido? Embora tivesse lido recentemente e achado bonito o fato de que o que diferenciava os seres humanos dos outros animais era o hábito de enterrar os membros falecidos de sua espécie, ela acreditava que nada de bom poderia ser extraído daquele evento macabro. Havia há muito adotado o lema bíblico deixe que os mortos enterrem seus mortos, mas estava ali, agora, desenterrando exatamente um de seus mortos — a sua mãe. Desenterrando um pedaço de sua vida que já havia deixado para trás e que não gostaria de ter lembrado.
Aquele hospital há quinze anos, o cheiro enjoativo de éter que teimava em não desaparecer mesmo depois de tanto tempo sem lembrar de nada, nada; a imagem do médico e das enfermeiras confabulando em torno da cama da mãe. A exata sensação de que simplesmente planejavam desocupar uma cama do centro de tratamento intensivo e ela não ter feito nada, nada, desejando voltar logo pra casa e não saber de mais nada, nada. Nunca mais pensara em nada, nada daquilo tudo que ficara na bruma da memória.
Não entendia porque os homens têm a mania de desenterrar o passado, mas a verdade é que somos uma espécie que migra desta terra para a outra. Uma espécie que escava a terra em busca de honra e sentido.
2.
O filme Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, trouxe novamente à minha memória um dia em que, voltando da faculdade para casa de ônibus em Nova Friburgo, avistei pela janela um homem bêbado urinando à beira do Rio Bengala. O sujeito cambaleou e despencou pelo barranco que levava às águas caudalosas do rio. Até hoje não sei se ele foi direto para a correnteza, ficou enredado nas plantas, deslizou para alguma vala ou acabou preso em uma poça de lama à margem. Naquele instante, pensei em gritar para as pessoas que passavam na rua ou pedir ao motorista que parasse o ônibus para ajudá-lo, mas nada fiz. Permaneci inerte, preso à minha própria zona de interesse. Queria chegar logo em casa, tomar minha sopinha, dormir na minha cama quentinha e, no dia seguinte, seguir com minha rotina inquebrantável. Esse episódio nunca saiu da minha memória. Devo tê-lo levado ao confessionário mais de uma vez. Devo ter passado por outras pessoas em situações penosas e sequer notado. Afinal de contas, também sou um burguês preocupado com o meu bem-estar — que se danem as dores do mundo. Afinal de contas, também sou um filho da puta, também enceno, no meu dia a dia, a banalidade do mal.
3.
Édipo mata o pai e desposa a mãe. Para ele, o pai é um rival.
Telêmaco, filho de Ulisses, contempla incessantemente o mar à espera de que seu pai volte de Ítaca. Para ele, o pai é uma ausência.
O pai do filho pródigo, do portão, contempla incessantemente a estrada, com os olhos fixos naquela direção. Para ele, o filho é uma festa.
4.
Há alguns anos, tive a oportunidade de conversar com um senhor extremamente inteligente e talentoso para as artes plásticas, que estava com câncer em estágio terminal. Era homossexual assumido. Eu estava com um grupo em visita à sua irmã, uma católica devota e atuante nas pastorais da Igreja. Ele participou ativamente das conversas e se declarou um homem de fé, mas não da religião institucionalizada. Com grande alegria, mostrou-me sua belíssima casa e sua coleção de memorabilia. Não falei sobre fé, mas ele parecia, de algum modo, interpelado por nossa presença, sentindo a necessidade de se explicar. Quando ficamos a sós, ele me contou que sua irmã havia chamado um sacerdote para lhe ministrar a extrema unção. Ele reconheceu que estava próximo da morte, aceitou a presença do padre e o elogiou. No entanto, quando o sacerdote lhe perguntou se estava arrependido para receber a absolvição, respondeu:
— Não, padre. Não posso mentir. Não tenho um pingo de arrependimento da vida que tive. Não vou prestar um testemunho falso. Não posso confessar.
Ele falou baixinho. A noite já estava caindo sobre a cidade. Os vizinhos estavam ocupados demais vendo televisão para queimá-lo como um bruxo.
5.
Um conselho aos velhos: envelheçam depressa!
6.
Um menino vem me dizer que desistiu de sua newsletter porque eu disse sobre a escrita de si — ninguém está interessado em seu cotidiano comezinho. A melhor escrita de si foi praticada por Flaubert: Madame Bovary, c'est moi!
A não ser que você seja a Natalia Ginzburg.
7.
A memória não capta a realidade em toda a sua brutalidade e assombro. Ela é um recorte, uma misteriosa eleição. Nem mesmo sabemos por que escolhe fazer-nos recordar o irrisório enquanto deixa submersos no lago escuro do inconsciente fatos de suma importância.
A matéria da literatura é a memória. Se a memória é, muitas vezes sem o nosso consentimento, uma elaboração, a literatura, por sua vez, é uma reinvenção da memória, moldada pela nossa vontade (ou desejo?). A literatura é uma recriação, muitas vezes uma transfiguração, uma superação ou até mesmo uma traição da memória.
Por isso me impressiona o fato de que as coisas não voltam. Meu pai, tio Zezito, tia Teresa, minha rua e seus paralelepípedos. Benji, o quintal, as fruteiras, o Colégio Estadual Maria Zulmira Torres. Pessoas, lugares. Nada disso nunca vai voltar. A memória é um recorte, a literatura é uma invenção.
8.
David Lynch afirmava não fazer filmes para que as pessoas os entendessem, pois, de certo modo, acreditava que a vida não tem sentido algum. Quem sou eu para afirmar que ele estava errado? A vida aqui embaixo costuma ser cheia de som e fúria mesmo. Vivê-la, como quem deseja devorá-la, e não escondendo sua lâmpada embaixo da mesa, é aceitar o desconcerto. No entanto, quem conhece a filmografia do genial diretor americano sabe que, mais do que tudo, ele desejava que seus filmes fossem compreendidos. Se ele escondia o significado profundo de suas narrativas no meio de tramas caóticas, imagens desconcertantes e climas surrealistas, era porque sabia que existe um sentido que o verdadeiro artista não pode entregar de mão beijada, sob o risco de baratear sua obra. O maravilhamento diante do absurdo que seus filmes provocam só é possível porque, no fundo, há um significado. A percepção do caos do mundo é, na verdade, a guarda do sentido do universo. A arte é a ponte. Lynch sabia disso: o tempo oculta o que é eterno.
9.
Dois bons nomes para esta newsletter: Os diários da bicicleta ou O Rapaz da Bicicleta. O nome Tempestades Mentais sobre Quase Tudo, o primeiro que adotei, já não cabe aqui. Nos primeiros números era aquele jorro quase sem filtro, uma fome de escrever e publicar, tudo passando quase imediatamente para o texto. Esses dias, revi Rumble Fish. Acho que agora eu não sou mais o Rusty James, mas o Rapaz da Motocicleta. Abandonei a violência, sou mais lento, rumino o texto, sou daltônico, enxergo tudo em preto e branco. Minhas epifanias são meus peixinhos coloridos. Tento cultivar uma melancolia filosófica — mentira, a melancolia nem preciso cultivar — fujo das brigas e me refugio a desilusão com um mundo que parece estar sempre desmoronando.
Sou o rapaz da bicicleta. Andar de bicicleta não é um esporte para mim. Não é ciclismo, é um exercício filosófico. Uma meditação. Minha esposa adora as fotos que faço, mas eu mesmo não as considero nada demais. São apenas registros. Tentativas — sempre frustradas — de domesticar pela beleza a incontrolabilidade do mundo. Quase todas feitas em cima de uma bicicleta, enquanto estou em pleno exercício contemplativo: extasiado olhando para uma nuvem ghibli, deixando-me inundar por uma golden hour, ou mesmo estupefato diante de alguma árvore (também adoro o nome A educação pela árvore).
Outro nome: Homens como árvores que andam, retirado do evangelho da liturgia de hoje, dia em que escrevo, 19 de fevereiro de 2025 (Mc 8,22-26). Ainda vejo os homens como árvores que andam. Dou um trabalho danado para a graça e para o meu anjo da guarda. Sou lento e gradual como um habitante do purgatório. Tenho que queimar aos poucos. É melhor do que arder em chamas de uma só vez. São as vantagens de aceitar ser mediano em vez de excepcional. Comer sal, caminhar lentamente. Aceitar ser.
Eu não devia ter atacado a escrita de si. E estou longe de ser a Natalia Ginzburg.
Essa newsletter é gratuita e sempre será, mas, se você gosta dela, considere fazer uma assinatura, comentar aqui, curtir os posts, compartilhá-la e divulgá-la. É fácil. Ela está cheia de botõezinhos por aí.
Quando exumei o corpo do meu pai, reconheci a manga da camisa. Nunca acreditei em flash-backs, mas tive um, rápido, do dia do enterro dele. Como ele estava, a roupa que vestia. Não aguentei ir até o fim.
Texto de grande sensibilidade! Construção cuidadosa que causa muita empatia. Evoé, Sérgio Souza!