Achou estranho ter dormido com aquele homem até às três da madrugada. Nunca fazia isso. Recebia o pagamento, cumpria o seu serviço, e ia embora. Acordou assustada no silêncio do quarto barato. Era como se fosse a única habitante de um mundo que não era seu. Saiu levemente debaixo do cobertor — onde já se viu dormir debaixo do edredom com um cliente! — com medo de que ele acordasse, mas ele ressonava tranquilo. Olhou pela janela a cidade tomada pelo breu. No espelho, o vestido vermelho, amassado, a boca manchada de batom. Demorou a achar os sapatos. As taças de champanhe espalhadas pelo carpete. Um copo de uísque entornado. Tornou a olhar no espelho. Onde é que estava com a cabeça?
Desde pequena tinha aquela sensação pungente de que fazia tudo errado. Logo cedo perceberam a beleza em seu rosto e a graciosidade em seus movimentos. Sem que conseguisse respirar os ares da liberdade, um destino foi colocado em suas mãos e deitou-se em seu colo. Muitos destinos deitaram a cabeça em seu colo. Com essas mãos desesperadas que não conseguiram reter a fortuna do tempo, ela jamais saiu da casa de seu destino, nunca conheceu outros pedaços de céu, nem as águas do mar vieram banhar-lhe as pernas. A escola frequentada com assiduidade foi a vida: o mundo ficou lá fora. Nunca segurou um filho nos braços. Todos esses pensamentos atropelavam sua mente agora. Onde você estava com a cabeça? O negrume da madrugada ia ganhando ares de manhã naquela cidade que agora parecia estranha, ao lado de um homem que não era seu. O dia iria nascer, e com ele todas as impossibilidades. Fugir, abraçar aquele fim de noite como se fosse a última porção de vida, ganhar as ruas das quais já conhecia até o avesso era o que havia. Mas no fundo sentia a necessidade de reter — sabe se lá com que forças — aquele momento, na penumbra do quarto onde o homem ainda dormia.
Olhando a noite, antes de decidir descer pelas escadas, sentiu que o mundo ou aquele rapaz — ou seria um homem já feito? — poderiam lhe pertencer, ou ela pertencer-lhes por inteiro, ao menos por aquele momento que já lhe parecia breve demais, enquanto se transformava em passado, à medida em que as primeiras luzes do novo dia pediam passagem. Abriu a porta, e antes que seus pés tocassem os degraus, olhou novamente para trás, como se buscasse um objeto perdido e o espelho mostrou um rosto que parecia transfigurado — seu próprio rosto?
O vento da madrugada gelou o corredor, denunciando que aquela noite seria igualzinha a qualquer outra noite. Em breve ele estaria em outros braços. Nas calçadas, os transeuntes - escuros -, embora raros, davam passos trôpegos em si mesmos. Sentia mais medo do dia nascente que da escuridão espessa das ruas quase vazias. O beco que dava para aquele hotel desembocava numa rua anexa e logo na avenida central. Queria esquecer aquele caminho para sempre, mas aquelas calçadas, aqueles postes, e a padaria já aberta, a pracinha, o monumento e a quaresmeira ficariam guardados. O varredor de rua que dobrou a esquina e deu de cara com ela decretou que já não havia mais tempo para arrependimentos: bom dia!
Quando chegou em casa, ele, o homem, já devia ter acordado, notado sua ausência, fumado um cigarro e observado o novo dia pela janela. Sentiu vontade de se deitar na cama, cobrir o rosto com o travesseiro e dormir, dormir durante o dia inteiro. Mas o telefone já começara a tocar — mensagens, compromissos, clientes. Logo teria que estar no centro da cidade — comprar outra meia-calça, novo batom — e antes das oito já estar pronta para trabalhar. Olhou para o teto e cochilou. Sonhou com o homem, que não tinha acordado antes dele, que dormiram juntos até o dia amanhecer, e se deram bom dia, fumaram um cigarro e desceram juntos para tomar café na padaria. E conversaram sobre tudo, tudo, tudo. Das alegrias e angústias. Que ele sentisse alegria, mesmo longe dela.
Acordou. Viu que não ia fazer um dia frio. Vestiu a roupa, não quis almoçar. Acenou para o táxi, seguiu para o centro. Pediu ao motorista que acelerasse. Que acelerasse até o ponto de cachoalhar seu corpo, seu cérebro e ela esquecesse aquela noite que não podia ser só sua, só sua e que acelerasse até que... Ele respondeu que não podia mais, era perigoso, as ruas já estavam cheias... Ela pediu então que parasse. E se despediu do motorista, se despediu do homem. E se despediu da noite. Até nunca mais.
***
Esse texto contou com a contribuição valiosa do escritor e editor Mariel Reis na revisão.
Mariel oferece serviços de mentoria e orientação literária. Contato: https://x.com/marielreis
***
Essa newsletter é gratuita e sempre será, mas se você gosta dela, considere fazer uma assinatura, comentar aqui, curtir os posts, compartilhá-la e divulgá-la. É fácil. Ela está cheia de botõezinhos por aí. Se você quiser fazer uma contribuição, o Substack oferece essa possibilidade.
Que lembrança me trouxe da música 'O mundo é um Moinho' de Cartola, principalmente do trecho "De cada amor tu herdarás só o cinismo". Muito obrigado por compartilhar conosco esse belo, angustiante, conto.
Eu amei!