"Limonada" e Corpus Christi
Ter lido "Limonada" antes da procissão de Corpus Christi talvez tenha sido, na verdade, uma revelação silenciosa.
1. No último dia 19 de junho, pouco antes da procissão de Corpus Christi, abri na tela o conto/poema Limonada, de Raymond Carver.
2. No conto, a vida de um pai é devastada pela perda de um filho. Jim Sears é consumido pela culpa por ter pedido ao menino que buscasse no carro uma garrafa térmica cheia de limonada, o que teria provocado o acidente fatal.
3. Jim Sears passou a ser assombrado pela visão do corpo do filho sendo içado das águas do rio por pregadores. “Usaram um grande par de pregdaores, iguais aos de cozinha, o senhor pode imaginar.”
4. Nada mais fez Jim se reerguer — viagens pela Europa, um curso de entalhamento de madeira no qual sua mulher o inscreveu, tentando distrair sua mente —, nada deu certo. Howard Sears, seu pai, já havia dado o alerta: “Talvez acabe ficando um pouquinho maluco”. De fato, depois de tudo, Jim “não gostaria de mais nada a não ser morrer”.
5. Saí para a procissão com esse conto também assombrando meus pensamentos.
6. O corpo do filho de Jim Sears passou a ser sinal de perda, ausência, desorientação. A lembrança desse corpo estilhaçado aniquilou o espírito de Jim Sears: “Um homem que, já tendo visto tudo agora — e seu filho morto ser içado do rio na ponta de pregadores de metal e girar, girar, voando por cima da fila de árvores…”
7. Na procissão de Corpus Christi, caminhei com Jim Sears, carregando a lembrança de seu filho morto. Caminhei também com meus filhos, também olhando para o Corpo de um Filho.
8. Mas, na noite fria, aquele Corpo, também despedaçado, era presença, vida que não se perde, promessa discreta de que a morte não tem a última palavra. O Corpo, que era pão, também estava exposto, içado não das águas turbulentas de um rio, mas dos subterrâneos mais profundos do inferno. Corpo que também era memória de uma morte e anúncio de uma vida imperecível.
9. Caminhando por aquelas ruas onde cresci, fiquei pensando: ninguém vê o Cordeiro degolado; todos olham para um pão sem chagas nem glória, envolto pelo dourado e pelos panos tecidos por mãos humanas. Ninguém vê o Cordeiro de pé, nem o Jardineiro visto pela mulher de Magdala. Nem eu. Nem padre Higor.
10. Ter lido Limonada antes da procissão de Corpus Christi talvez tenha sido, na verdade, uma revelação silenciosa: todo amor humano, tão frágil, tão sujeito à perda, encontra no corpo divino um eco redentor.
11. Se o conto de Carver termina no silêncio de uma ausência insuportável, o pão é uma resposta — uma presença que sustenta o mundo.
12. Talvez eu precisasse contemplar dois corpos no mesmo dia para lembrar que a vida caminha sempre entre esses dois extremos: a ferida que nunca sara e o pão que nunca se esgota.
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Perdi meu único irmão repentinamente quando tinha 25 anos, ele 23, meus pais muito católicos sempre em comunhão com o corpo divino, nunca perderam a alegria de viver, eu custei muito a compreender isso, como demorei, hoje já sem meus pais, casado e com dois filhos, sinto que a força que tenho para continuar no meu caminho, vem Dele. Sinto e sei que é o único caminho. Obrigado, como sempre mais um lindo texto.
Que texto maravilhoso! Obrigada por compartilhar com a gente. 🙏🏼