1.
Um mulher em luto, mergulhada nas lembranças do filho perdido, contempla a paisagem que entra pela janela. É um jardim? Um cemitério? O mar? Um rapaz sai do túmulo, caminha sobre as águas, se desfaz de suas faixas e feridas, abençoa o mundo e se joga nos braços da mãe: “Todos nós tivemos tristeza demais, agora é hora de alegria.” Ela olha para mim, e eu respondo: “Ele trará paz e boas novas. Boas novas para todas as coisas.”
2.
Bob Dylan ouvindo Joy e tendo uma epifania parisiense durante um show de Nick Cave. Apesar de todo o lixo cultural despejado diariamente sobre nós — o catálogo da Netflix, por exemplo — esse mundo ainda é um lindo lugar para se consumir arte verdadeira.
3.
Um dos acontecimentos musicais do ano é ver Morrissey nos palcos, cantando em suas apresentações. É o único espaço onde ele ainda pode se expressar — cantar, falar — sem ser atacado. Com dois discos gravados, Bonfire of Teenagers e Without Music The World Dies, ele não consegue lançá-los devido ao constante cancelamento que sofre de todos os lados. Aliás, ele tem afirmado que em seu país a livre expressão virou crime: "Como vocês sabem, ninguém mais vai lançar minha música" ele disse, segundo a APP. "Como vocês também sabem, isso acontececporque sou um grande defensor da liberdade de expressão. Pelo menos na Inglaterra, isso agora é criminalizado. Você não pode falar livremente na Inglaterra. Se não acredita em mim, dê um pulo lá. Expresse uma opinião, e você será mandado para a prisão. É muito, muito difícil."
Talvez seja por isso que ele cante quase sempre como se estivesse se despedindo. Ninguém sabe quando será a última vez.
4.
Laura Marling teve uma filha. Ter um filho sempre vira a mulher do avesso. É um acontecimento fundante. Laura não é Joni Mitchell nem Judee Sill. A tradição está lá, mas ela é totalmente Laura. Mãe com as entranhas na mesa, escrevendo cartas para sua filha ler quando tiver a idade para saber que um dia o mundo desaba sobre nós com suas sombras abissais e instantes fugazes de liberdade, não deixando pedra sobre pedra. Laura sabe disso tudo. Sabe com seu violão, sua voz doce e arranjos esplendorosos de corda. Leu todos os livros, sabe que a carne é triste e agora precisa explicar para a filha. E para as mães que tem e terão filhas e escutarão sua arte. Laura sabe que sua filha enfrentará o inevitável peso da solidão de uma mulher no mundo —My altar, she's leaving, where will I go to pray? — pois somos padrões em repetição; e sempre seremos.
Mas não se deixe enganar pelo escriba, este não é apenas um disco triste. É um disco sobre o amor, e o amor é muito mais belo do que triste. A tristeza transfigurada pela beleza é uma alegria sóbria .
5.
Escrevi uma meditação – chamo assim porque não é exatamente um poema. Não tenho domínio da métrica ou da técnica poética, apenas o sentimento, mas gosto de usar esse formato, um pouco como Patti Smith faz em seu Instagram. Inspirado pelo estilo de Nuno Costa Santos, intitulei-a Regresso à escola. Se, por um lado, adotei a forma de Nuno, por outro, o ambiente interior foi moldado pela belíssima Endsong, que encerra o novo álbum do The Cure, Songs of a Lost World. A letra dessa canção segue abaixo da meditação. Leia-a e entenderá por que Robert Smith desaba no vídeo que postei, de uma apresentação do The Cure na Croácia, com uma interpretação cheia de emoção.
Regresso à escola
Tenho voltado ao colégio onde estudei por muitos anos.
Quando deixamos um colégio de que se gosta é como se ele morresse.
Somos muito egoístas nisso (pra mim foi uma ruptura como a flecha no coração de Santa Teresa).
Não se imagina que a vida continua sem a nossa presença.
Que tudo continua sem precisar da nossa respiração.
Mas, paradoxalmente, quando se regressa ao colégio, a essa escola que julgávamos morta, há um sentimento de desesperada nostalgia ao vermos que as pessoas já não estão lá.
Que a cantina não tem os mesmos funcionários e nem mesmo existe mais.
Que a bibliotecária já faleceu.
Que o pátio está vazio e cheio de fantasmas.
Que tudo ali é novo, mas a memória está mais envelhecida, e todos se foram.
Como nós.
É uma constatação.
E uma dor.
***
Endsong
And I'm outside in the dark
Staring at the blood red moon
Remembering the hopes and dreams I had
And all I had to do
And wondering what became of that boy
And the world he called his own
I'm outside in the dark
Wondering how I got so oldIt's all gone, it's all gone
Nothing left of all I loved
It all feels wrong
It's all gone, it's all gone, it's all gone
No hopes, no dreams, no world
No, I, I don't belong
No, I don't belong here
It's all gone, it's all gone
I will lose myself in time
It won't be long
It's all gone, it's all gone, it's all gone
Left alone with nothing at the end of every song
Left alone with nothing at the end of every song
Left alone with nothing
Nothing
Nothing
Nothing
***
tradução:
Canção de despedida
Estou aqui fora no escuro,
Sob a luz da lua carmesim,
Revivendo os sonhos que um dia foram meus
E o que eu deixei pelo caminho.
Onde está o garoto que eu conhecia,
E o mundo que chamava de lar?
Ah, aqui fora no escuro,
Encaro o quanto envelheci.
Tudo se foi, tudo se foi.
Nada restou do que eu amava.
Tudo parece tão errado.
Tudo se foi, tudo se foi, tudo se foi.
Sem esperanças, sem sonhos, nada mais.
Eu não pertenço a este lugar,
Não pertenço a este tempo.
Tudo se foi, tudo se foi.
Eu me perderei no silêncio,
Não vai demorar muito.
Tudo se foi, tudo se foi, tudo se foi.
Deixado sozinho com o vazio,
No eco da última canção.
Deixado sozinho com o vazio,
No eco da última canção.
Deixado sozinho com nada...
Nada...
Nada...
Nada.
***
6.
Às vezes, tenho até vergonha de admitir: gostei tanto de Romance, dos Fontaines D.C. porque ele é exatamente o tipo de álbum que eu adoraria ouvir no final dos anos 80, início dos 90. Não que os Fontaines D.C. sejam retrô ou nostálgicos, mas eles conseguem capturar ou até resgatar a vibração da grande música e dos álbuns inesquecíveis daquela época. E eu, como bem definiu Robert Smith no tópico anterior, estou na fase do tudo se foi, tudo se foi, tudo se foi.
Então por que sinto tanto entusiasmo quando escuto os discos desses meninos irlandeses, que ficam melhores a cada álbum, se o rock está morto (desculpe, Neil Young, mas até você virou um old Neil) e virou coisa de velho?
Não sei, e nem busco respostas. Quero só colocar Romance no repeat e me exilar por alguns minutos deste mundo.
***
7.
David Gilmour me deu um tinitus no ouvido esquerdo. Agora tenho que tomar cuidado com o volume dos fones para ouvir o seu novo, Luck and Strange, que tenho vontade de escutar altíssimo. Na verdade, não há nada de novo nele. E é exatamente isso que espero de David Gilmour: nada de novo. Apenas que compense o tinitus com mais algumas belas canções e solos inesquecíveis.
8. Penetro, descalço, porque é sagrado, o teu mundo, enquanto X’s, dos Cigarretes After Sex toca numa vitrola imaginária. O serviço de streaming é uma vitrola imaginária. Mas a música dos corpos é mais real que a das esferas. Greg Gonzalez não é o autor, não é a voz — não é a língua nem a palavra. A essência da música, mais do que tocá-la, é escutá-la. Nós a escutamos. Mais: somos sua própria vibração, deixamo-nos levar, por um instante. Nem sou mais eu. Estou perdido. Esse é o seu maior dom: fazer com que eu me perca. You make me forget myself. I thought I was someone else, someone good. Você me leva de volta para aquele refúgio.
9.
Eu não devia estar falando aqui do disco da paquistanesa Arooj Aftab, Night Reign, — cheio de melodias com nuances árabes e orientais cantadas em urdu e inglês — porque ainda não me familiarizei com esse conjunto de canções. Mas é uma música que me impressionou tanto, com sua mistura de folk de câmara com as tais inflexões árabes jazzísticas, que não posso deixar de citá-lo aqui. E citar também o fato de conter uma beleza que não tranquiliza, mas, é, de certo modo, perturbadora.
10.
Outro disco que não é nada tranquilo é Lives Outgrown, de Beth Gibbons. Aliás, Gibbons nunca foi de oferecer música fácil. Seu caminho é outro: ela soterra o ouvinte aos pés da beleza. Não espere placidez de seu chamber folk repleto de cordas tensas e uma profundidade inquietante.
11.
Eu torcia o nariz para o The Smile. O mundo não precisa de mais um Radiohead. Mas aquela afinada de corda da guitarra na introdução de Bending Hectic, primeiro single de Wall of eyes, o segundo disco, foi quase uma toca do coelho que me jogou no universo do The Smile. Fiquei uns dois meses obcecado, com meu hiperfoco inflamado. Depois, desencanei. Mas esse foi o primeiro grande disco de 2024.
12.
Todo ano tem sua perfect pop song. A de 2024 é Afterlife, de Sharon Van Etten.
13.
Antes de What´s Going On, ninguém tinha feito um disco como assim. Marvin Gaye desafiou os padrões da Motown, com seus temas, sua(s) voz(s), composições e arranjos (sobretudo os arranjos de corda, etéreos, bem diferentes de tudo o que era feito no soul daquela época). Assim como Stevie Wonder talvez tenha mais longe ainda com sua sequência quádrupla de discos que culminou no sobre-humano Songs in The Key of Life.
Michael Kiwanuka, que não chega nem perto dessa mística criativa, é, pelo menos herdeiro dessa tradição, com seu segundo disco Love&Hate. Porque ele fez esse disco e se inseriu nessa conversação com os grandes mestres do soul, todo álbum que ele lança merece atenção. Eu estou prestando atenção à Small Changes seu novo disco e já o achei digno de figurar aqui.
14.
O meu xará Sérgio Curvello me indicou o novo do Primal Scream, Come Ahead. Confesso que ando afastado da banda e não acompanhei os trabalhos mais recentes. Mas esse aqui me surpreendeu logo de cara. Bobby Gillespie sempre pertenceu a um universo musical mais amplo que o dos irmãos Reid, do Jesus and Mary Chain (que também está com álbum novo, o bom Glasgow Eyes), do qual fez parte. Se os Reid avançaram até os anos 90, onde dialogaram um poquinho com a geração posterior à sua, ali cravaram os pés, na tradição que eles mesmos ajudaram a criar. Gillespie jamais parou. Se o Primal Scream, no início, chegou a embarcar na class of 86, pouco tempo depois deu ao mundo o caldeirão Screamadelica , no qual misturavam rock, dance, soul, dub e outras pulsações. A partir daí, nada parou Gillespie.
Esse novo disco veio depois da desistência de um álbum solo, atrapalhado pela pandemia. E reflete bem o universo amplo do líder da banda. O que mais impressiona é que Bobby Gillespie não é só esperto e antenado, mas tem canções a oferecer. Bandas da geração do J&MC e do Primal Scream só sobrevivem com canções. Isso Gillespie sabe fazer hoje melhor do que os irmãos Reid: compor grandes canções pop. E embalá-as numa batida disco com arranjos de cordas retrô ou dar-lhes o formato de baladas de cortar o coração. Come Ahead tem boas canções para dar e vender.
Não que o Primal Scream tenha alguma obra-prima imortal como Darklands, mas envelheceu melhor que seus irmãos escoceses.
Se escreva na Newsletter do Sérgio.
Receba gratuitamentre em seu e-mail.
Comente e compartilhe se gostou!
Beleza de tour por essas músicas e tantos significados, Sergio. É do melhor – e extinto – jornalismo musical, mas vai além. Eu vou te dizer um negócio, uma certa turma conhecida nossa fala numa tal de alta cultura, em coisas eruditas.
Acho isso uma grande mentira, um fingimento sem tamanho, pelo seguinte: simplesmente não é possível dar um salto com barreira para trás e ignorar a música popular – popular no sentido de não-clássica.
Nós estamos mergulhados na cultura do nosso próprio tempo, não temos nenhum controle sobre isso. Significa que podemos e devemos ter um olhar para o que de melhor nosso tempo produziu, e a maioria dessas coisas boas não sabemos.
Sabemos a raspa oferecida na grande mídia – aí sim, a pior parte da cultura contemporânea. Os puristas e afetados tomam essa ração midiática pelo todo, por ignorância.
Obrigado por mostrar o melhor que há e pode haver na cultura do nosso tempo também, sem desprezar a herança geral. Porque tudo se conversa no fim das contas. Grande abraço, meu caro.
Valeu pela citação, Xará. Grandes discos nessa lista. Um verdadeiro alento em tempos onde tudo é tão diluído e se evapora em 24h.
Quanto ao Morrissey: gênio indomável