1. Ler é reler; escrever é revisar; cortejar a perfeição é cortar.
2. A literatura é um exame de consciência, um exercício de discernimento. Acabei de ler O homem no estojo, conto de Tchekov, e, por Deus, como temos medo da liberdade! "E, por acaso, viver na cidade, no abafamento, na aglomeração, escrever textos supérfluos, jogar baralho, por acaso isso também não é um estojo? Passar a vida toda, como nós fazemos, no meio de homens ociosos e briguentos, entre mulheres tolas e desocupadas, dizer e ouvir toda sorte de absurdo, por acaso isso não é um estojo?" Viver dominados pela fome e pelo estômago, pelo dinheiro e pelo vinho, pelo sexo e pela violência, por acaso não é um estojo?
3. Minha memória anda péssima, mas me lembro de uma newsletter de Noemi Jaffe:
“Escreveu uma coisa linda? Corta.” Digo isso faz tempo e, outro dia, descobri que algum editor famoso dos Estados Unidos dizia a mesma coisa para um dos seus autores mais importantes: “selecione todas as partes do livro que você mais gostou. Agora apague.”
4. O Emerson, Lake and Palmer é um clássico do rock progressivo. Mas é uma banda que precisava aderir aos conselhos do parágrafo anterior: “Corta!”; ”selecione todas as partes do disco que você mais gostou. Agora apague.” Corte todos os exageros, todas as longas passagens instrumentais, os exercícios jazzísticos e clássicos, as convenções sem-fim, as masturbaçoes sonoras que deveriam ter ficado somente nos ensaios ou em jams no estúdio.
Queremos todo mundo tocando bem? Sim! Queremos virtuoses? Sim! Queremos jazz? Muito! Queremos clássico? Mais ainda!
Mas queremos na medida certa. No caminho do meio. Queremos temperança, Sr. Keith Emerson! Queremos moderação e equilíbrio, Dr. Carl Palmer. Queremos C’est la Vie! Queremos From The Beginning! Mas não queremos um lado inteiro do disco só com exercícios que vocês deveriam ficar fazendo em casa, só para vocês mesmos. Sei que vocês podem e gostam disso. Está lindo? Corte! Está foda? Delete! Está transcendente? Apague!
5. Certa vez um amigo disse que Lucky Man era uma balada perfeita até entrar o solo de Moog. Não! Não! O solo de Moog é justamente o que salva Lucky Man de ser apenas uma bela balada folk para se tornar um clássico progressivo. Ele destoa da canção. É uma coisa esquisita. Ficou datado na época do punk, do pós-punk e das college rádios, mas voltou à moda pouco depois. Um timbre cósmico, espacial, inserido numa canção de tom pastoral. Um disco voador pousado na roça. O estrambótico, quanto usado com sabedoria, vira atemporal. Keith Emerson percebeu um kairos ali quase pelo fim de Lucky Man. Em In the beginning, o timbre já não parece tão inadequado (embora estivesse longe do comum), mas vence pela beleza. Talvez seja o solo de sintetizador mais bonito do prog. Tem pegada, tem groove e tem técnica. E acaba com quatro minutos. É quase um conto de Raymond Carver — todo o excesso foi limado.
6. Talvez tenha faltado um produtor que colocasse limite na megalomania instrumental dos três, dado que os discos eram produzidos pelo próprio Greg Lake ou pela banda. Talvez precisassem de um interventor que dissesse menos é mais, como Gordon Lish, o Capitão Cortador, fez com o estilo de Carver, restringindo, condensando e reescrevendo brutalmente muitos dos seus contos.
7. Não que eu não aprecie longas passagens instrumentais quando necessário. Mas são poucos os que souberam fazê-lo com perspicácia e sobriedade. O Genesis era uma banda mestra nisso. Os álbuns da fase mais progressiva com Peter Gabriel, que começa com Nursery Crime e vai até The Lamb Down on Broadway, são um exemplo perfeito. O Yes também tem os três clássicos em que esbanjam virtuosismo e tempo sem cansar os ouvidos. O King Crimson é um exemplo estranho, porque é menos popular, mais cabeçudo e milimetricamente equilibrado. O ELP é que tem momentos tão mágicos e brilhantes que se destacam do todo da obra, que muitas vezes dá a impressão de ser uma amostra barata do talento dos meninos prodígio. Esses momentos são tão out of time que a gente pensa: será que não podia ser sempre assim?
8. O acordeão, aquele clima francês, melancólico e meio cigano em C’est la vie, a explosão de wah wah em Still You turn me on, onde os caras conseguem colocar todo o seu virtuosismo a serviço da canção ou até mesmo a suíte Take a Pebble, em que eles se soltam instrumentalmente — especialmente o piano de Emerson —, mantém-se fiel ao tema, sem se perder em mil convenções ou em demonstrações exibicionistas de virtuosismo.
9. O virtuosismo é a busca tensa pela perfeição técnica. Perfeição não é perfeccionismo nem impecabilidade. A ineficiência é uma rebelião sagrada. O perfeccionismo é um estojo.
10. Pouca gente comenta, mas que violonista/guitarrista fantástico é Greg Lake. Econômico, discreto e preciso. O timbre de seu violão é quase mágico. Um compositor admirável, foi ele quem ajudou a moldar aquelas belíssimas baladas acústicas que emolduraram o primeiro disco do King Crimson — e trouxe esse mesmo estilo para o ELP.
10. Reza a lenda que Ulisses tinha quase duas mil páginas. Joyce conseguiu reduzi-lo a oitocentas. Duas mil páginas deve ser um exagero para condensar um dia na vida de um homem. Tá vendo o exemplo, mister Keith Emerson? Aaté os mais complexos e exuberantes conseguem praticar a arte da concisão, ainda que não consigam diminuir para aquém das oitocentas páginas. Eu sei que onde você está já não consegue fazer mais nada. Além disso, como disse Pilatos, o que gravou, está gravado. Mas cá estou eu usando sua prolixidade musical para falar de literatura e vida.
11. Um disco, mesmo de prog mais viajante ou cabeça, precisa ser divertido. O que não diverte, morre de véspera. A canção tem que acabar. Não forçar permanências artificiais é uma sabedoria. A impermanência é a realidade, aceitar o fim das coisas é o caminho torto da paz (que escorre pelos dedos, como o tempo). Uma canção perfeita dura quatro minutos, e quando acaba, deixa um corte na alma que faz você querer sumir no mundo. Como Homesick, que só tem três, e fala de perder vendas, dinheiro e colocar o emprego em risco para ouvir canções pelas quais se é apaixonado. E quando termina, fica exatamente aquele nó, um gostinho de homesick na garganta.
12. Pai, você sabe o que significa homesick?, pergunta João quando o convidei para escutar a canção. E ele mesmo me explica.
13. Homesick, caros irmãos. É isso que a beleza nos provoca. Matheus Bazzo escreveu algo belíssimo no Twitter. A internet já transborda maldade, negativismo, agressividade e rivalidades. Tomo para mim o caminho que ele apontou: “Afogar o mal com a criação de bens tem sido a meta da minha vida.”
14. Espalhar pelo mundo a saudade de casa.
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Que viagem boa, meu amigo. Viagem que por fim virou uma aula. Obrigado.
Como disse o Fernando, que viagem boa, Sergio.
Um abraço luso.