1. Minha mulher me disse que eu gosto tanto de rotina que se fosse o Truman viveria uma vida inteira sem perceber que estava naquele programa de TV.
2. Achei bonita certa vez a explicação de um filósofo: se o eterno retorno fosse, de fato, real, que tipo de vida deveríamos viver para que fosse digna de ser vivida uma e outra vez — e mais uma vez, infinitamente?
3. Será que o tempo nos foi dado como um dom, para que vivamos tantas vezes quantas forem necessárias, até que recebamos uma dignidade capaz de merecer ser estendida até a eternidade? Seria esta a poética do tempo? Seria esta a gramática da rotina?
4. Sim, gosto da rotina — ela não é alienante. Gosto do tempo comum, quado vejo o padre subir ao altar vestido de verde. As festas quebram o andamento cotidiano. A rotina é a possibilidade de passar muitas vezes pelas coisas para aprofundá-las. Você passa todo dia por aquela árvore e percebe que ela é uma árvore, depois que ela é verde, ainda que tem flores, também que sua figura constrasta com o azul do céu; que é a árvore da vida, a árvore do conhecimento do bem e do mal, a árvore da cruz. Quantas vezes você precisou passar pela árvore para desvendá-la?
5. Rotina é ritmo. O ritmo humano é dialético, não mecânico. Quem já tocou algum instrumento com um clic no fone para marcar o ritmo sabe. Nosso ritmo, humano, é sujeito a realentamentos, pausas e até ao silêncio. O ritmo das máquinas é implacável, linear, inexorável. O nosso ritmo é manco e errático. Mas é ritmo. É a cadência quase imperceptível que percebemos — hoje a tanto custo — na natureza, no universo, na realidade, e que também está em nós. É o compasso do coração humano que bate junto com o mundo, mas que a gente insiste em esconder de nós mesmos.
6. É a capacidade de perceber a artificialidade da rotina imposta pela sociedade tecnocrática o que pode nos salvar do domínio das inteligências artificiais. Truman Burbank levou uma vida inteira para notar. Quanto tempo não levaríamos?
7. O futuro próximo será marcado pela nostalgia da contemplação . Não é preciso ser profeta — a humanidade grita. E gritará. Se a obra do artista é fundamentalmente oferecer ao outro o fruto da própria contemplação, o homem não pode se contentar com conteúdos produzidos pela mera combinação de dados realizada por um mecanismo eletrônico.
8. Paul Graham comentou no Twitter, dias atrás, que a evolução das inteligências artificiais nos levará a um mundo pós-letrado: “Acabei de perceber algo que muita gente vai perder quando — e isso é só uma questão de tempo — passar a usar inteligência artificial para escrever tudo: vamos perder o conhecimento de como a escrita é construída. Esse tipo de perda sempre acompanha o avanço da tecnologia. Hoje, quase ninguém sabe mais tecer tecidos, fazer cerâmica ou trançar cestos. Mas é estranho pensar que escrever vai entrar nessa lista.” O grande drama: “E, sinceramente, acho que essa perda será muito mais profunda. Porque escrever não é só produzir texto — é uma forma de pensar. Quando a gente para de escrever, perde também um jeito inteiro de raciocinar.”
9. Antes mesmo de ingressarmos no mundo pós-letrado, já havíamos, de certo modo e de forma geral, ingressado há bastante tempo no mundo pós-literário. A palavra escrita — sobretudo a densa e reflexiva — perdeu centralidade. Em seu lugar, prevalecem a imagem, a oralidade das redes e os estímulos sensoriais da tecnologia. Estamos entrando na era do pós-letramento, mas já saímos da era literária. E de certo modo o mundo pós-literário é uma etapa necessária para o pós-letramento. Tente colocar os moleques que vivem com a cara afundada o dia inteiro em reels ou videozinhos de tik-tok para ler um Pinóquio, um Monteiro Lobato ou quem sabe assistir a um filme de Miyazaki. Eles simplesmente não conseguem. É lento demais para eles. Sim, literatura de imaginação, tanto para quem lê quanto para que escreve, é uma atividade contemplativa. Perder a capacidade de ler, de acompanhar um filme que narra uma história sem pressa, é, no fundo, perder a capacidade de contemplar. É a geração da era tecnocrática, como dizia o Papa Francisco. A geração do homem automático.
10. O escritor contempla para escrever, elabora o que contemplou escrevendo e serve aos outros publicando. O leitor participa da contemplação do escritor quando lê, e se o escritor for bom, e ele for inteligente, elaborará sua própria contemplação a partir do que leu. Assim acontece mais ou menos com todas as artes. É essa capacidade de contemplar, de pensar e de criar que a humanidade vai deixando à beira do caminho quando assume para si uma vivência exclusivamente tecnocrática. Nostalgia da contemplação é nostalgia do humano. É um desejo de retorno. Nem tudo está perdido.
11. Um último ponto necessário. O desejo de retorno não deveria ser um anseio de uma volta ao passado. É um retorno à contemplação. Ao mesmo tempo, um retorno ao futuro. Não há possibilidade de retorno a um mundo pré-IA. Como disse Pedro Sette-Câmara: sim, é o fim de algo, e talvez o começo de outro algo, em que *tudo vai mudar de sentido*.
12. A IA é o futuro, a vida contemplativa é o futuro, a rotina é o futuro. Um futuro que ninguém sabe como será, porque ninguém sabe o que está acontecendo. Encerro com Pedro Sette-Câmara: A tarefa da hora é para poucos: observar, digerir, pensar.
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Talvez o verdadeiro futuro seja mesmo esse: um retorno à lentidão como forma de resistência. Bravo.
Obrigado pelas belas e importantes reflexões, meu amigo. Subscrevo tudo, tudo.