"If I should fall from grace with God
Where no doctor can relieve me
If I'm buried 'neath the sod
But the angels won't receive me"
- Shane McGowan
Depois que a minha tia morreu, na época da pandemia, nunca mais tive prazer em beber. Ainda bebo, evidentemente, aqui está o meu copo de vinho, o prato com tira gostos, e ali está o garrafão. Antes, eu bebia por prazer. Gostava da baderna dos botequins, do barulho das ruas, de vagar sem destino pela cidade.
Quando minha tia era viva, eu tinha motivo para beber. Tinha um lugar para voltar —o meu quartinho nos fundos—, chegava em casa e sempre tinha um prato de janta, a conversa nos intervalos da novela, a benção antes de dormir, o conselho para parar de beber. Sua figura era uma onipresença. Eu bebia como se estivesse fugindo do seu olhar. Perambulava pelos bares sem nunca me esquecer de que estava sob seus cuidados.
Minha tia era a única da família que ainda falava comigo. Uma vez fui visitar meu irmão no litoral para pedir uma colaboração para cuidar dos dentes e ele mal me recebeu na varanda de sua casa para um café. Obviamente achava que eu queria dinheiro para beber ou para aprontar das minhas, como ele dizia. Mas não era. Eu queria o dinheiro para cuidar dos dentes mesmo. Nunca mais apareça aqui para pedir dinheiro, rosnou minha cunhada, que até aquela ocasião parecia gostar de mim, me achava engraçado. Um pouco como o bobo da corte que animava as festas da família. Vi meu irmão pouquíssimas vezes desde então. Até dos meus sobrinhos, dos quais tanto gostava, tive que me afastar, porque sentia que representava uma ameaça.
Por essas e outras fui perdendo o gosto pela bebida. Passei a beber sozinho, em botequins cada vez mais distantes. A bebida é boa, mas é uma desgraça. O vinho barato estraga os dentes, o estômago e a vida. Quanto mais bebia, mais me afastava da família e das pessoas. O culpado era eu mesmo. A única que não fez questão de se afastar de mim foi tia Ermelinda. Com ela eu sempre tive entrada. Fazia questão de sempre me receber. E, quando eu já não tinha mais ninguém, me abrigou no quartinho dos fundos — eu e Vênus, o vira-latas caramelo, que dormia num paninho no corredor, quase encostado à porta.
É difícil esquecer as caras de desgosto que lançaram certa vez sobre mim ao chegar numa festinha de aniversário da família. Como sempre, não fui convidado para a rodinha dos importantes. É claro que era antes do almoço e eu já tinha tomado algumas. Mas não dá para mentir a respeito do constrangimento que é ser olhado como um estorvo. Até esse dia, eu era aceito porque me portava como um cidadão da segunda classe familiar. Gente metida a rico acha que pobre tem que pedir bênção o tempo todo. Pagar tributo à sua honra, só para ocupar o mesmo ambiente. Pois nesse dia eu caguei e andei para todos. Me entupi de copos e mais copos de vinho — naquela ocasião, nada baratos — e fui me entreter com as crianças. Eles odiavam quando os pirralhos se divertiam, naquela algazarra de fazer gosto. Incentivei a molecada a jogar bola e a pular na piscina. Depois, bati em retirada, como quem não quer nada, dando um tchauzinho de longe para não incomodar ninguém.
Depois que tia Ermelinda partiu, algo em mim se quebrou. Durante a pandemia, perambulei por todos os bares e cantos sujos da cidade e me encontrei com todo tipo de pessoa, sem tomar qualquer cuidado. Jamais me senti minimamente mal, nem contraí qualquer tipo de enfermidade. Tia Ermelinda, por sua vez, precisou ir ao hospital para uma transfusão de sangue e acabou contraindo a doença. Logo foi entubada. A internação não durou três dias. Não houve velório. Na hora do enterro, fiz questão de ficar no bar mais próximo do cemitério. Chorei e rezei entre bitucas de cigarro e copos com restos de vinho barato.
Você pode até ficar puto comigo, mas vou lhe dizer: na pandemia era melhor do que hoje. Havia um perigo do qual fugir. Havia pânico no ar. Estava todo mundo junto cagando de medo do vírus, e isso dava uma sensação de que ao menos uma coisa unia a humanidade. Estávamos vinculados pelo fio do terror, e isso nos dava de certo modo a impressão de pertencer a uma família. Até nós, loucos, que errávamos de bar em bar, precisávamos afogar nossas crises de pânico no álcool. Uma liga de desespero nos colocava todos no mesmo barco. Hoje, parece que foi cada um pro seu lado.
Meu lugar é a sarjeta. O deles também. Somos feitos do mesmo sangue, da mesma lama, da mesma podridão. Mas... somos medíocres. O que nos falta, miseravelmente, é alcançar — como os pródigos e os publicanos — os mais altos cumes do desespero e da adoração.
Hoje eu só tenho o Vênus e uma noite de Natal chuvosa. Penso nos meus pais, nos meus irmãos e nos antigos natais, com fartura e festa abundante. A bebida é uma desgraça, mas o vinho traz de volta os natais da infância, as empadinhas, a rabanada e o pernil. Talvez meus irmãos estejam reunidos agora. Provavelmente vou comer aquelas duas coxinhas que sobraram na estufa do bar da Zita, degustá-las com um copo gelado de refrigerante, esperar a rodoviária esvaziar, juntar minhas cobertas e cochilar em algum banco. Essa noite não vou beber mais. Vou me lembrar de tia Ermelinda, fazer o sinal da cruz, dar boa noite ao menino Jesus, a Vênus, e dormir. Vou sonhar que preciso buscar tia Ermelinda ao fim da missa do galo, para acompanhá-la até em casa, e acordarei sobressaltado. Olharei para o presépio montado no canteiro da rodoviária, avistarei novamente o Menino Jesus e direi, entre soluços e lágrimas: seja meu único vinho.
Depois, vou fechar os olhos e dormir novamente. Como uma criança crucificada no colo da Virgem.
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Valeu, grande @João Filho !
Seus textos tem vida, caro Sergio. Eles pulsam, respiram.