Você é escritor?
Eu ia dizer que sim, mas acabei de ler um conto de Dalton Trevisan e, se ele é um escritor, tenho vergonha de dizer que também sou.
Ele descreve uma única cena, grotesca e apavorante, e, ao final, o que fica em nossa imaginação é o que ele não disse. Ele consegue direcionar a nossa atenção para o não-dito, mesmo tendo descrito uma cena tão forte. Eu não sei fazer isso.
E a direção para a qual Dalton conduz nossa imaginação (e conduz sem macular nossa liberdade) é a direção da realidade. Não a realidade óbvia, comum, corriqueira, burguesa, que se oferece diante dos nossos olhos, mas a realidade absurda, aberrante e deformada ( por isso mesmo varrida pra debaixo do tapete), incômoda, que a maioria de nós se recusa a enxergar, mas que existe, encerrada no bairro vizinho, quem sabe entre as quatro paredes de algum imóvel muito próximo, um prostítulo, um boteco risca-faca, um quarto miserável de hospital. Um escritor faz isso. Dribla o óbvio ululante.
Hoje o padre disse na homilia que interpretar um texto é tentar descobrir o que o autor desejou dizer, mas escondeu por detrás do que foi revelado, no subtexto. Ele usou a palavra entrelinhas, mas é mais do que isso: é silêncio. O mais importante para interpretar o texto é tentar desvendar o significado dos silêncios deixados entre os intervalos das palavras que compõem o texto. Como nas músicas do Gang of Four.
Aqui em casa, estamos encontrando dificuldades na adaptação do Carlos, nosso caçula, à presença da nossa gatinha, a maravilhosa Kiki. Ele fica querendo conduzir a bichinha o tempo inteiro, fazendo casinhas com as cobertas ou obrigando-a a assistir vídeos no celular com ele, como se ela fosse um brinquedo. E o gato é o animal mais livre e independente que existe, vocês sabem.
O escritor de verdade sabe tratar o texto como quem cria um gato. Carlos não sabe criar gatos, eu também não sei. A liberdade é um bicho ainda mais estranho que o gato. O escritor, na maior parte das vezes, é um autor, mas reconhece a autonomia do texto; sabe que ele não é o seu brinquedinho nem sua massa de modelar. Sabe que não pode ser um manipulador e respeita a liberdade do texto. Às vezes cabe-lhe acompanhar, e quase sempre lapidar, dar a forma final. Mas ele só parte para esse processo de acabamento quando percebe: aqui tenho um texto, aqui tenho uma criatura, aqui tenho um gato, preciso educá-lo, respeitando a sacralidade de sua liberdade.
Ansiar é, de fato, a essência do ser humano. Vivemos nossas vidas sob a constante sensação de incompletude, de abandono, com a percepção dolorosa de que algo nos falta. Esse é o grande drama humano, encenado no Jardim do Getsêmani, onde, na hora final, Cristo clama pela misericórdia de Deus e percebe que o Pai se retirou, deixando-o entregue ao próprio destino. Essa experiência da ausência de Deus — que meus amigos ateus interpretam como a própria inexistência de Deus — é, a meu ver, o supremo ato do amor divino: Deus nos concede a liberdade de sermos o que quisermos ser.
Esse é o anseio universal por aquilo que é bom, belo e verdadeiro. Existimos neste mundo e sofremos justamente por essa verdade e essa beleza, cuja ausência nos fere e nos move.(Nick Cave, The Red Hand Files, questão 328, Junho/2025)
Um dos grandes dramas da humanidade é não saber respeitar a liberdade alheia. Deus nos concede a liberdade de sermos o que quisermos ser. Mas o sujeito quer mandar no que sentimos e pensamos. Os únicos que têm o direito de entrar na sua vida e interferir neste tesouro escondido que é a liberade são aqueles que se comprometem com você para a vida toda. Todos os demais só podem pedir licença.
Meu pai, que foi o homem mais ético e cotidianamente místico que tive o privilégio de conhecer, nunca me disse o que fazer. Sempre me permitiu pensar o que penso e sentir o que sinto. Confiava em mim como homem. Assim aprendi a nunca depender de ninguém para me dizer qual caminho seguir.
Meu paizinho não enchia o saco de ninguém. Estava o quanto podia em silêncio. Ao lado da cama, um onipresente terço, uma bíblia surrada (que está agora aqui em meu escritório). Ao meio dia, rezava silenciosamente diante do Sacramento. Às vezes, em meu horário de almoço, eu entrava na Igreja e o observava, do último banco. Não interrompia a sua conversa.
Meu pai nunca pregava. Nunca dava testemunho nas reuniões. Fazia o que era preciso fazer como se isso fosse o único meio que encontrou de viver. Não se achava melhor do que ninguém. Apenas queria viver assim.
Quando me inclinei ao conservadorismo (depois desenclinei, apesar do temperamento), ele já tinha abandonado as ideias de esquerda. Tentei catequizá-lo, mas ele se esquivou. Nunca deu um pito sobre minhas opções políticas. Tenho a impressão de que naquele momento ele já considerava nossa política "tudo palha"...
Uma lição dura de aprender.
Deixar o texto livre para escapar do óbvio. E o outro, livre para “esculpir sua própria estátua” (Plotino).
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