1. Sempre fui contra ter animais em casa. Janine também. As crianças, por outro lado, sempre sonharam com isso. Houve tentativas — cachorrinhos, gatinhos, pintinhos, patinhos e peixinhos. Nada deu certo.
2. Tivemos um periquito, o Brasil, que por um breve período teve uma companheira, a Cida. Mas eram eles lá na gaiola e nós dentro de casa.
3. Dessa vez, as crianças apareceram com um gatinho. Batizei o bicho de cara: o nome do gato é "Some". Some daqui em uma semana.
4. Até que fui condescendente. Deixa o bicho ficar uns dias. Quando começar a dar trabalho e pesar no bolso, mando direto para a porta da rua.
5. Já na primeira noite, ele veio roçando na minha perna, pulou no meu colo, me deu mordiscadas de leve e soquinhos carinhosos com as patas, como se soubesse que o obstáculo a ser vencido era eu.
6. No segundo dia, Janine já estava rendida— na verdade, desde o primeiro olhar — e todo mundo já discutia qual seria o nome verdadeiro do gato. Meu coração de pedra resistia, firme, convicto de que não era possível fazer nenhuma besteira.
7. Ele seguia, gracioso, brincando, pulando e tropeçando pela casa. Depois de uma derrota do Vasco, veio me consolar, deitando no meu colo. Choramos juntos, em silêncio. Um choro pra dentro. Só os vascaínos e os gatos conhecem esse tipo de choro.
8. Mas é preciso dizer: o gato não é sentimental. Essa é uma sabedoria muito própria deles. Eu disse choramos juntos, mas, verdade, ele apenas acompanhou minha ressaca pós-jogo com um olhar indiferente, fazendo companhia. Naquele momento, ele parecia saber que não cabia brincar. Só queria ficar ali comigo, assistindo, puto e triste, à entrevista de Fernando Diniz, que não tinha explicação alguma para oferecer. Uma derrota do Vasco é inexplicável. Por isso minha vida de torcedor é quase um teatro do absurdo. Pobre gatinho.
9. No dia seguinte, me debrucei sobre o poema de T. S. Eliot, Dar nome aos gatos. Escolhi Fellini. Todo mundo já tinha escolhido Neko, que é gato em japonês ( japonês adora gato, nós adoramos Ghibli, etc). Ficou Neko Fellini. Dois nomes. O terceiro nome, se você leu o poema de Eliot, sabe que só o próprio gato conhece.
10. Ele está aqui, dormindo ao lado da mesa do escritório. No sábado, comprei sachê de gato para ele degustar. Hoje comprei mais. Ontem, o Vasco ganhou e ele veio para o meu colo. Não sei por quê, mas parecia sorrir.
11. O bicho não tem alma racional, mas nós temos. Acho que de alguma forma, ao menos os gatos — e talvez os cachorros — dão um jeito de participar da nossa alma. Nos buscam, fazem companhia e se entretém conosco. Os filósofos falam em senciência; nós apenas sentimos a conexão. Lembrei de uma frase do Fernando Diniz na entrevista, quando lhe perguntaram por que não havia tirado o Vegetti, de 36 anos, da partida para que descansasse e outros jogadores mais jovens tivessem oportunidade. Ele respondeu: Eu não sou um cara que se baseia muito no GPS, na idade do jogador… Sou mais de sentir do que de medir.
Nós, que não somos filósofos, também somos mais de sentir do que de medir.
12. Já que estamos falando de alma… já ouvi dizer que, se o bicho não tem alma, não entra no céu. Mas, segundo minhas especulações cronísticas, se ele participa de algum modo da nossa alma, há uma possibilidade. O que a memória ama fica eterno.
13. Não opino sobre a teoria do inferno vazio, mas gosto de pensar na ideia de um céu cheio. Um céu onde há espaço até para os animais.
14. E, se há espaço no céu, quem sou eu para dizer que aqui em casa também não haverá? Bem-vindo, gato.
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Com a devida licença, caro Sergio, gostei mais do papagaio Brasil. Nome sensacional 😄
Felicidades com o novo mascote!